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28ª Parada Livre de Porto Alegre transforma protesto, memória e afeto em ato político

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Sob calor de quase 35°C, milhares de pessoas ocuparam o Parque da Redenção neste domingo (7) para a 28ª Parada Livre de Porto Alegre, que neste ano ocorreu pela primeira vez já reconhecida como Patrimônio Cultural Imaterial da cidade. Em um momento de avanço do conservadorismo e de ataques aos direitos LGBTQIA+, a edição de 2025 trouxe o mote “Revolte-se! Parada é protesto”, reafirmando o caráter político, comunitário e celebratório do evento.

Organizada por cerca de 20 coletivos e movimentos LGBTQIA+, a Parada incorporou oficialmente a 1ª Marcha Trans de Porto Alegre, além da segunda corrida drag de pedalinhos.

Também participaram entidades sindicais como a Central Única dos Trabalhadores do Rio Grande do Sul (CUT-RS), Sindicato dos Professores e Funcionários de Escola do Rio Grande do Sul (Cpers), o Sindicato dos Bancários de Porto Alegre e Região (SindBancários), Sindicato dos Servidores Técnico-Administrativos em Educação da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Universidade Federal de Ciências da Saúde de Porto Alegre e Instituto Federal de Educação (Assufrgs), Sindicato dos Petroleiros do Rio Grande do Sul (Sindipetro-RS), Associação de Docentes da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (Adufrgs), o Sindicato dos Trabalhadores do Judiciário Federal e do Ministério Público da União no Rio Grande do Sul (Sintrajufe-RS), Sindicato dos Servidores da Justiça do RS (Sindjus), entre outros. Além do Ministério Público Estadual, da Defensoria Pública do Estado, do Tribunal Regional do Trabalho da 4ª Região e da Gerência de Participação Social e Diversidade do Grupo Hospitalar Conceição (GHC).

“Há muito a se revoltar”

Representando a ONG Mães pela Diversidade e integrante da organização, Estela Maris de Labar destacou que o tema “revolte-se” expressa indignação diante do aumento da violência e da retirada de direitos.

“Parada é festa, é luta e também é protesto. É revolta contra o racismo, contra o machismo, contra o genocídio da população negra e contra a matança das mulheres. Estamos perdendo direitos, perdendo a cidade, vendo Porto Alegre ser degradada. Há muito a se revoltar.”

Ela reforçou o papel das famílias na defesa da comunidade LGBTQIA+. “Estamos aqui para mostrar que nossos filhos têm família. Não são cidadãos de segunda classe. As Mães pela Diversidade abrem a Parada para apoiar incondicionalmente nossos filhos.”

“Estamos aqui para mostrar que nossos filhos têm família”, enfatizou Estela Maris de Labar – Foto: Jorge Leão

Integrante da equipe de comunicação da Parada, Isha Trindade, 22 anos, da Vila Jardim, ressaltou a importância do evento para jovens LGBTQIA+ da periferia. “A parada foi onde eu vi que existiam outras pessoas como eu, onde consegui me sentir parte de um coletivo. No bairro onde moro, não temos a representatividade que existe no Centro. Quem está morrendo somos nós: pessoas periféricas, negras, trans, travestis. Ver uma travesti negra no palco ou a Marcha Trans abrir a parada é muito importante. Mostra que estamos mais unidos do que nunca.”

Sobre o caráter histórico do evento pontuou que a parada nasce de Stonewall (Revolta de Stonewall, ocorrida em 28 de junho de 1969, no bar Stonewall Inn, em Nova York, um momento crucial que marcou o início do moderno movimento pelos direitos LGBTQIA+), e se intensifica ao longo do tempo. ”É festa, mas é sobretudo um ato político. Porto Alegre tem a segunda parada mais antiga do Brasil. Isso importa.”

“Quem está morrendo somos nós: pessoas periféricas, negras, trans, travestis”, pontuou Isha Trindade – Foto: Jorge Leão

Já o integrante da organização e conselheiro estadual de Direitos Humanos, Isidoro de Sousa Rezes, do coletivo Outra Visão, apontou a construção do evento, e da contribuição de entidades sindicais e institucionais para a concretização da parada, assim como a apatia do Executivo para sua execução. “Desde março construímos coletivamente esta edição com 20 organizações. Não foi fácil. Nós estamos com uma rede maravilhosa de proteção e de acolhimento e que a gente sente super maravilhoso.” Rezes teve a primeira união estável homossexual reconhecida em todo o território nacional.

Ele também destacou retrocessos em curso. “Há um movimento internacional de extrema direita tentando retirar o ‘T’ da sigla. Não vamos permitir. Pessoas trans e travestis sempre estiveram conosco, desde Stonewall. Precisamos estar vigilantes.”

“Desde março construímos coletivamente esta edição. Não foi fácil. Nós estamos com uma rede maravilhosa de proteção e de acolhimento”, afirmou Isidoro de Sousa Rezes – Foto: Jorge Leão

Corpos políticos

Para a autora da lei que tornou a Parada Livre patrimônio imaterial, a vereadora Natasha Ferreira (PT), a parada deve ser símbolo da cidade, não de gestões. “Nós lutamos pela independência das paradas. Eu acho que esse projeto de lei é um pontapé para que se busque recursos do governo federal, de outras instituições, inclusive, mas que a parada possa sempre ser independente, que ela possa trazer a política do movimento LGBT, mas também a festa, porque eu acho que num país tão violento como o que nós vivemos, a festa faz todo sentido para nós.”

Sobre o mote da atual edição, complementou dizendo que revoltar-se é se insurgir contra o capitalismo, contra quem nega a crise climática e as injustiças. “Sabemos o quanto o Estado tem sido injusto com a população LGBTQIA+.” Ferreira compõe, ao lado de Giovani Culau (PCdoB) e Athena (Psol), a primeira bancada LGBTQIA+ da história da Câmara de Porto Alegre

Para Giovani Culau (PCdoB), a parada reafirma a disputa por direitos em meio a ataques conservadores. O vereador destacou o caráter de celebração e resistência do evento, citando a luta por educação, emprego e saúde, e a necessidade de resistir a ações como os pedidos de cassação de mandatos de parlamentares LGBTQIA+.

Culau também estabeleceu uma conexão direta entre a violência contra a comunidade e o feminicídio, afirmando que “o ódio que mata LGBTs é o mesmo que mata mulheres”, e que a parada é também um ato em defesa da vida das mulheres.

Parada contou com participação de parlamentares, entre eles a primeira bancada LGBT da capital – Foto: Jorge Leão

A vereadora Atena Beauvoir Roveda (Psol) enfatizou o momento histórico da edição, marcada pela primeira bancada LGBT na Câmara de Porto Alegre. Para Roveda, este avanço significa que “não há mais como retroceder em políticas que defendem nossas vidas”. Ela concluiu que a parada é um espaço de liberdade, afeto e felicidade, lembrando que “LGBTs nascem em todas as famílias desta cidade”.

“A Parada é resistência e identidade cultural”

“A Parada Livre é a celebração das nossas existências e das nossas lutas por direitos. Esse encontro também é a expressão da nossa revolta contra quem tenta apagar a população LGBTQIAPN+. Porto Alegre segue negando políticas públicas para a nossa comunidade, e é por isso que estamos na Câmara: para garantir que estejamos no orçamento, na memória e na cultura da cidade. A parada é resistência e identidade cultural”, frisou a vereadora Juliana Souza (PT).

Vinda do município de Rio Grande, a vereadora Regininha (PT) refletiu sobre o significado da parada. “Muitas vezes somos expulsas de casa, então a parada é pertencimento, resistência e vida. Ela fala dos nossos corpos e nos projeta socialmente. Se hoje existe uma vereadora travesti no interior do estado, é porque existe uma Parada Livre, politizada e organizada. Não aceitamos mais dar um passo atrás.”

A deputada federal Daiana dos Santos (PCdoB) ressaltou que a Parada Livre simboliza a luta e a diversidade do povo de Porto Alegre. “Demonstra, inclusive nas urnas, a força que temos”, afirmou.

Primeira deputada federal negra e lésbica da história do Congresso Nacional, Santos destacou que sua trajetória surge “dessas fileiras, desse movimento”, e que participa do evento “sempre com muita energia”. Para ela, a parada é um espaço de formulação política, resistência e valorização das existências.

A deputada também celebrou o reconhecimento da Parada como Patrimônio Cultural de Porto Alegre. Segundo ela, o título reforça sua importância e a necessidade de políticas públicas que garantam igualdade, investimentos e o direito de amar, viver e existir. “Esse é um patrimônio do povo brasileiro”, concluiu.

Presente ao evento, a vereadora carioca Mônica Benício (Psol), que a convite de Manuela Dávila participou do Festival Mulheres em Luta (MEL), sublinhou a urgência da luta em meio ao avanço da extrema direita. “A parada é festa e cultura, mas nasce de uma revolta. O Brasil segue sendo o país que mais mata pessoas trans no mundo e um dos que mais matam LGBTs. Assim como acontece com o feminicídio, é uma violência que só cresce.”

Benício lembrou o caráter nacional das mobilizações e defendeu políticas públicas que garantam o bem viver da população LGBTQIA+ e das mulheres. “Eu ainda tenho a teimosia de acreditar na política feita com afeto. Precisamos reconstruir o nosso senso de humanidade e garantir que a vida esteja acima do lucro.”

“Eu ainda tenho a teimosia de acreditar na política feita com afeto”, afirmou a vereadora carioca Mônica Benício (Psol) – Foto: Jorge Leão

Defesa e promoção de direitos

A defensora pública Bibiana Veríssimo, dirigente de núcleos como o da Diversidade Sexual e de Gênero (Nudiversi), ressaltou que a Defensoria participa anualmente da parada para oferecer informações e orientação. No evento, foi distribuída a mais recente cartilha, focada em pessoas LGBT privadas de liberdade no sistema prisional do Rio Grande do Sul, um público de mais de 500 pessoas que enfrenta violações agravadas.

A publicação detalha direitos como o uso do nome social, garantia de local seguro, respeito à identidade de gênero e o direito à expressão de gênero citando o exemplo do “uso de pinças”. A Defensoria também orientou o público sobre retificação de nome e direitos reprodutivos, além de distribuir materiais sobre visibilidade intersexo e identidade trans. A defensora mencionou ainda a alta demanda da defensoria especializada na Capital para a retificação de nome, um serviço que atende a toda a população que necessite.

O Ministério Público Estadual também participou da parada com estrutura de atendimento ao público. O órgão levou seu ônibus de atendimento para receber demandas da população LGBT e encaminhá-las às promotorias responsáveis.

“O Ministério Público tem no DNA a promoção e a proteção dos direitos humanos. A proteção de populações vulnerabilizadas socialmente, o que inclui a população LGBT, está na nossa atribuição constitucional”, afirmou o promotor de Justiça Leonardo Menin, coordenador do Centro de Apoio dos Direitos Humanos e da Proteção dos Vulneráveis. Ele destacou que a atuação envolve áreas cíveis, como ações civis públicas em direitos humanos, e também o enfrentamento criminal da LGBTfobia, hoje equiparada ao crime de racismo após decisão do Supremo Tribunal Federal (STF).

Segundo o promotor, há casos registrados em diversas comarcas do estado. Ele citou uma ação civil pública por homofobia ajuizada contra um deputado federal que fez declarações ofensivas ao governador, entendidas pelo MP como ataques à comunidade LGBT em sua honra e participação social. Para Menin, a presença do Ministério Público na parada é também um ato simbólico de apoio à causa. “Pretendemos estar sempre presentes aqui”, afirmou.

Evento teve participação de entidades sindicais que entre as pautas defenderam o serviço publico de qualidade – Foto: Divulgação/Assufrgs

Compromisso com equidade e trabalho digno

O Tribunal Regional do Trabalho da 4ª Região (TRT4) marcou presença na Parada Livre. Para a juíza Lúcia Rodrigues de Matos, co-coordenadora do Comitê de Equidade de Gênero, Raça e Diversidade do tribunal, participar do evento é motivo de “muita honra e muito orgulho”, refletindo ações implementadas pela instituição.

O TRT4 foi um dos primeiros tribunais do país a criar, em 2017, uma política de equidade de gênero, raça e diversidade. “Tem DNA LGBT”, disse Matos, lembrando que a iniciativa partiu da servidora Ana Nayara Malavolta Salp, e foi acolhida pela presidência do tribunal. Em 2023, o Conselho Nacional de Justiça aprovou uma política nacional com parâmetros semelhantes.

Segundo Matos, instituições públicas têm o dever legal de implementar políticas antidiscriminatórias. “A Constituição veda a discriminação e exige igualdade substantiva”, afirmou. Ela destacou o projeto Transformando Vidas no Mundo do Trabalho, voltado à empregabilidade de pessoas trans, que já realizou cursos de gastronomia e agora busca parceria com a Associação Brasileira de Bares e Restaurantes (Abrasel). O projeto inclui formação antidiscriminatória para empresários.

“É um projeto transformador não só para pessoas trans, mas para nós, porque precisamos nos transformar enquanto instituição e sociedade”, declarou.

Matos também celebrou a Parada Livre. “A parada contribui para o mundo que queremos. Um mundo onde o Brasil deixe de ser, há 17 anos, o país que mais mata pessoas trans, que têm expectativa de vida de 35 anos. A generalização dessas informações vai provocar ação das instituições.”

“A parada contribui para o mundo que queremos. Um mundo onde o Brasil deixe de ser, há 17 anos, o país que mais mata pessoas trans”, apontou a juíza Lúcia Rodrigues de Matos – Foto: Jorge Leão

Marcha Trans: união como resposta

A realização da primeira Marcha Trans em Porto Alegre, que integrou a programação da 28ª Parada Livre, representa um marco político e simbólico para a população trans e travesti da cidade. Athos, um dos participantes, destacou a importância de ser acolhido pela Parada Livre, um movimento de 28 anos, e de vir abrindo esse espaço. Segundo Athos, esse gesto de união se contrapõe a movimentos recentes que tentam fragmentar a sigla LGBT+.

Ele enfatizou que “nada acontece separado, e sim junto”, alertando que a política tenta colocar uns contra os outros porque “para eles, o coletivo é perigoso”. A marcha encerrou três dias de programação com debates e encontros, sendo um momento de celebração do resultado desse trabalho coletivo.

42 anos de acolhimento e diversidade

Funcionária da tradicional casa Vitrô, Suzy B. destaca o papel histórico do espaço na cena LGBT+ de Porto Alegre. “O Vitrô é a casa mais tradicional de Porto Alegre. Ela existe há 42 anos. É uma casa inclusiva, onde tu encontra todos os tipos de pessoas. As pessoas podem ir lá se divertir, se sentem acolhidas e respeitadas”, explica.

Ela lembra que a noite LGBT+ ainda enfrenta discriminação em diversos espaços, mas o Vitrô se mantém como refúgio. “Lá tu não encontra discriminação. Tu pode ser rico, pobre, gordo, magro… as pessoas vão te respeitar e te olhar como tu és.”

Para Suzy, a Parada Livre reforça a existência e resistência da comunidade LGBTQIA+ na Capital. “Ela traz visibilidade pra gente e mostra que existimos e resistimos há tanto tempo, no meio de tanta política contra nossos direitos. Estar aqui manifestando e mostrando que estamos vivos é muito importante.”

Caminhada foi aberta pela 1ª Marcha Trans da Capital – Foto: Jorge Leão

“A festa dos corpos é política”

Um dos fundadores da Parada Livre e integrante do Nuances, Célio Golin destaca o peso histórico e político do evento, que chega à 28ª edição. “É uma continuidade de uma história que começou em 1997, em outro cenário político. A parada se constituiu como um movimento de rua, de visibilidade, que ocupa um espaço simbólico da cidade, que é a Redenção”, afirma.

Segundo ele, o crescimento do evento reflete a expansão do movimento. “Hoje já são em torno de 20 coletivos e entidades que participam. É um momento onde pessoas que sempre estiveram à margem ocupam um lugar com muito mais autoestima e legitimidade.”

Golin sublinha o caráter político da celebração. “Dizem que é uma festa, mas é a festa dos corpos, da sexualidade, dos prazeres, e nada mais político do que isso em uma sociedade tão conservadora e moralista como a nossa.”

O fundador ressalta que 2025 representa um marco jurídico e simbólico. “A Parada Livre se tornou patrimônio cultural imaterial da cidade de Porto Alegre. Isso corrobora com a história que se construiu nesses 28 anos.”



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