Nesta sexta-feira (5), João Pessoa recebe o lançamento de um filme que existe para nos lembrar que a fé latino-americana já foi abrigo, trincheira e arma contra as sombras.
Em sessão-debate às 19h, o Cine Bangüê exibirá O Evangelho da Revolução, documentário que revisita a Teologia da Libertação como uma experiência viva de resistência. O diretor, François-Xavier Drouet, estará presente, reforçando a dimensão política e coletiva que o longa reivindica.
| Card: Divulgação
O evento consolida a estreia do filme na Paraíba, depois de passar por diversas capitais, sempre acompanhado de debates com o cineasta. A proposta, segundo ele, é recuperar uma história ameaçada pelo silêncio e, ao mesmo tempo, convocar o público a refletir sobre as raízes populares que fizeram da Igreja um dos redutos de enfrentamento às ditaduras.
A memória como território de disputa
Segundo o diretor, o Evangelho da Revolução nasceu da urgência em registrar o legado de um movimento que marcou profundamente a América Latina. Para Drouet, o tempo corre contra a memória da Teologia da Libertação. Muitos dos protagonistas envelheceram ou já não estão vivos. O filme percorre arquivos, territórios e testemunhos de religiosos, lideranças comunitárias e militantes que, movidos por uma leitura social do evangelho, se colocaram ao lado dos pobres no período de maior repressão do continente.
“Eu percebi que era urgente registrar essa história antes que fosse tarde demais, porque os protagonistas envelheceram e muitos já tinham falecido. Também me dei conta de que a América Latina conhece pouco sua própria história comum, e eu queria contribuir para essa memória compartilhada, mostrando como a fé se tornou instrumento de emancipação”, comenta ele.
Um movimento forjado nas lutas
A Teologia da Libertação surgiu em meio às contradições da América Latina dos anos 1960 e 1970, quando ditaduras militares se espalhavam pelo continente. Inspirados por leituras críticas das desigualdades e pela organização de comunidades pobres, bispos, padres e agentes pastorais passaram a defender os trabalhadores, apoiar perseguidos políticos e dialogar com movimentos sociais.

O documentário recupera trajetórias de nomes que se tornaram referências: Frei Betto, Leonardo Boff, padre Júlio Lancellotti e o mártir salvadorenho Dom Óscar Romero, assassinado em 1980 por defender os pobres em plena guerra civil. O filme mostra que, apesar da pressão durante os pontificados mais conservadores, a Teologia da Libertação jamais foi formalmente condenada e seguiu viva nas bases, nas pastorais e nas lutas por terra, moradia, direitos humanos e soberania popular.
O papel do Brasil e o peso da resistência
No Brasil, a Teologia da Libertação estruturou as Comunidades Eclesiais de Base e influenciou profundamente movimentos como o MST e o PT. Durante a ditadura, figuras como Dom Hélder Câmara e Dom Paulo Evaristo Arns se tornaram vozes internacionais contra a tortura e desapareceram dissidentes nas sombras do regime. Nas zonas rurais, a Comissão Pastoral da Terra garantiu apoio jurídico e proteção a ocupações, num período em que camponeses eram massacrados por defender o direito de existir.
“A Igreja se tornou um dos poucos espaços que os militares não conseguiram controlar totalmente. Isso permitiu que militantes encontrassem proteção e legitimidade. Foi um guarda-chuva que garantiu que as lutas continuassem. Em outros países, como El Salvador e Guatemala, a repressão foi brutal a ponto de catequistas serem assassinados apenas por carregarem uma Bíblia. Registrar essa história é também honrar essas vidas”, afirma Drouet, em uma das falas mais longas do filme.
Cinema como território de encontro
Produzido com apoio franco-belga, Evangelho da Revolução enfrentou dificuldades para ser absorvido por emissoras de TV e plataformas comerciais. Para o diretor, isso acabou fortalecendo o caráter político da obra, que prioriza exibições presenciais, coletivas e acompanhadas de debate.

| Crédito: l’atelier documentaire
João Pessoa integra o circuito nacional que inclui Rio de Janeiro, São Paulo, Brasília, Porto Alegre, Salvador, Recife e outras cidades. Entre as sessões, destaca-se a exibição na histórica Fazenda Annoni, no Rio Grande do Sul, local de ocupações acompanhadas pela Comissão Pastoral da Terra, no final dos anos 1970.
A sessão incluirá debate com François-Xavier Drouet, que irá compartilhar detalhes do processo criativo, das viagens pelo continente e do reencontro com comunidades que mantêm viva a espiritualidade engajada.
Segundo o cineasta, o objetivo da circulação brasileira é “restabelecer vínculos e celebrar aqueles que, com grande coragem, enfrentaram regimes autoritários guiados por uma fé que não aceita injustiça”.
A seguir, uma entrevista exclusiva para o jornal Brasil de Fato PB com o diretor sobre o lançamento em João Pessoa.
1 – Quais foram os maiores desafios ao transformar a história da Teologia da Libertação em linguagem cinematográfica, e como o senhor equilibrou rigor histórico com narrativa artística?
Bom, Cida, sobre a dimensão cinematográfica do filme: é certo que este não é um filme pensado para televisão, mas para ser visto numa tela grande. Não é um curso de história nem uma página de Wikipedia. É um olhar subjetivo sobre a Teologia da Libertação e, ao mesmo tempo, uma viagem pela história revolucionária da América Latina através desse movimento, cujo papel foi muito importante.
No filme, eu falo em primeira pessoa exatamente porque não tenho a pretensão de objetividade, e trabalhei com técnicos de cinema para construir essa perspectiva. Os personagens que escolhi – sejam anônimos, sejam teólogos conhecidos – foram selecionados porque, além do que dizem, possuem uma presença cinematográfica forte, uma força interior e um desejo de lutar que, acredito, se transmite ao público.
Na construção da narrativa, busquei articular presente e passado: um filme gravado desde o presente, desde esta situação difícil que vivemos, com a escuridão, a volta do fascismo e um certo sentimento de impotência. Perguntamo-nos: para onde devemos ir para lutar? E olhar retrospectivamente para esse movimento oferece ensinamentos.
Também optei por privilegiar materiais de arquivo – especialmente grandes documentários realizados por cineastas latino-americanos, aos quais rendo homenagem. Eles filmaram as lutas contra as ditaduras e muitas vezes captaram as consequências desses conflitos para a Igreja e a participação de padres, freiras e leigos. O grande presente que recebi foi a autorização das famílias para usar esse material, que tem uma força fotográfica e cinematográfica muito grande. Por isso, dei preferência a esses arquivos em vez de imagens de agências ou imprensa.
O objetivo foi criar ressonância entre as imagens do presente latino-americano e aquelas que revelam, com muita intensidade, o fervor revolucionário da época.
2 – Na sua visão, qual é o papel da Teologia da Libertação hoje, diante das novas formas de desigualdade e dos movimentos sociais contemporâneos na América Latina?
A Teologia da Libertação foi fortemente marginalizada pelo Vaticano. Ela segue viva, existe, mas não tem mais o peso e a força que tinha nos anos 1970 e 1980, muito por causa da violenta guerra cultural lançada contra ela pelo Papa João Paulo II e pelo cardeal Ratzinger. Nunca foi condenada oficialmente, foi reconhecida como importante, mas ficou à margem. Até mesmo as Comunidades Eclesiais de Base – um terreno fértil desse movimento – deixaram de ser bem recebidas num contexto em que João Paulo II foi muito crítico ao Concílio Vaticano II, centralizando a Igreja na figura do padre e reforçando estruturas rígidas.
Apesar disso, a Teologia da Libertação permanece ativa e, pelo que observei, ganhou impulso em novos temas. Um deles é a migração, muito forte na América Central. Ela acompanha migrantes não apenas com ações de caridade, mas com trabalho de defesa jurídica e também psicológica diante da violência do Estado e do narcotráfico. Existem casas de abrigo ao longo da rota migratória que fazem um trabalho maravilhoso.
Outro tema é a ecologia: lutas pela defesa do meio ambiente contra o extrativismo. No México, por exemplo, encontrei pessoas inspiradas pela Teologia da Libertação engajadas contra megaprojetos. E, claro, permanece o trabalho junto aos pobres. Aqui no Brasil, a figura do padre Júlio Lancellotti é conhecida – não só por seu trabalho com a população de rua, mas porque ele representa essa continuidade da opção pelos pobres. Existem muitos outros e outras seguindo esse caminho.
3 – Qual é a sua expectativa para o lançamento do filme aqui na capital paraibana?
Minhas expectativas são muito positivas. O filme já estreou em cinemas na França, depois na Alemanha, Bélgica e Suíça, e passou por festivais. Mas, aqui no Brasil, quis que ele circulasse fora do circuito comercial. Disponibilizo o filme gratuitamente para quem quiser organizar sessões.
Organizamos esta turnê pelo Brasil com exibições em várias capitais, em salas importantes – cinematecas, espaços culturais -, mas também em territórios de luta, em bairros periféricos. A recepção do público brasileiro tem sido excelente, muito além do que eu esperava. As salas têm ficado cheias, e percebo uma emoção muito grande.
Grande parte do público é formada por pessoas que foram profundamente transformadas pela Teologia da Libertação, para quem esse movimento deu sentido à vida cristã. Elas revivem isso ao ver o filme, e sinto essa emoção nos comentários após as sessões. E eu tenho recebido pedidos diários para exibir o filme nas capitais, no interior e nas periferias. Para mim, isso é maravilhoso.
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