Minha coluna da semana já estava pronta quando fui atravessada pela mais nova onda do momento: matar e violentar mulheres. Na verdade é uma onda bem antiga que cresce a cada verão mas só vira notícia quando alguém morre na praia.
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Sou de uma família de nove mulheres. Cresci com a imagem de mulheres cozinhando e correndo atrás das crianças enquanto os homens bebiam em bando. Lembro da minha mãe ao fim dos churrascos de domingo organizando a cozinha enquanto meu pai via futebol. Na segunda, quando cada um deles ia pro trabalho, ela era a “mãe brava” e ele o “brincalhão”. Esse era o normal pra mim.
Assim como era normal o menino que xingava as meninas de piranha divididas entre as “de família” e as “rodadas” e até as agressões justificadas com “ele bebeu demais”. Mulheres sendo chamadas de problemáticas e descompensadas também era supernormal. Então eu cresci achando que devia ser uma mulher casável. Agradável. Editável. Daquelas que fingem rir das piadas machistas do marido. Só fui entender a palavra abuso quando vi, pela primeira vez, o rosto de uma mulher machucada. Quando li a história da Maria da Penha. Quando o “Me Too” chegou ao Brasil e amigas começaram a contar baixinho os abusos que sofreram de familiares e pessoas próximas.
Me lembro quando fiz a primeira campanha sobre violência doméstica e lá se explicava os vários tipos de abuso: sexual, patrimonial, psicológico. Para muitos, papo chato de feminista. Para nós, uma vida inteira. Só não sabíamos o nome. Porque a minha geração ainda normaliza o abuso. A gente lê, ouve, posta mas muitas vezes ainda estamos aqui: repetindo nossas mães.
- Cora Rónai: O mês dos livros perfeitos
Sim, temos que incluir os homens. Mas como? Perguntei a um amigo hétero. Ele respondeu: “Vocês se colocam de uma maneira chata e revoltada. A gente não tem vontade de ouvir. Mulher também destrói um cara psicologicamente. É hipocrisia vocês se colocarem como mais frágeis. Se está ruim, sai. É covardia usar da causa pra se vitimizar. Isso que acaba com o feminismo. São direitos iguais, não são?”.
Enquanto eu fazia aula de corte e costura na escola (sim! eu estudei em escola de freira), vocês já estavam voando com o carro do papai. Covardia é começar a corrida com a gente lá atrás enquanto vocês já nasceram com rodinhas nos pés. A largada nunca foi a mesma. Se não começarmos a conversa admitindo que somos atrasadas historicamente ficamos discutindo o óbvio. E outra: como vocês podem gastar anos falando sobre uma queda de um jogador, analisar replay revoltados e, diante da morte de mulheres… não falar nada? No Brasil de hoje, silêncio não é neutralidade: é cumplicidade. E digo mais: TODO HOMEM NASCEU DE UMA MULHER!
É claro que não falei nada disso. Briguei dentro da minha própria cabeça, como já fiz tantas vezes, tentando não entrar na categoria da feminista chata ou da mulher desequilibrada. Eu juro que meu amigo é legal. Ele só foi criado como todos os homens: no centro do mundo.
Enquanto isso, a gente segue como tartarugas em meio às lebres em mais um verão: digerindo traumas, desviando das ondas e tentando, apesar de tudo, cruzar a linha de chegada vivas.
