A Associação Brasileira Interdisciplinar de AIDS (Abia), por meio do Grupo de Trabalho sobre Propriedade Intelectual (GTPI/Rebrip), protocolou no Supremo Tribunal Federal (STF) seu pedido de ingresso como amicus curiae na Ação Direta de Inconstitucionalidade ADI 7875, que questiona pontos centrais da Lei nº 14.874/2024, chamado de novo marco legal de pesquisas clínicas com experimentos em seres humanos. A norma, aprovada sob forte pressão da indústria farmacêutica, reorganiza o sistema de ética em pesquisa no Brasil e reduz salvaguardas históricas para quem participa de testes clínicos. Trata-se de um retrocesso ético, científico e sanitário com impacto direto sobre os corpos mais vulnerabilizados da população brasileira.
A ação, proposta pela Sociedade Brasileira de Bioética, questiona a criação, por iniciativa do Legislativo, da “Instância Nacional de Ética em Pesquisa”, vinculada à Secretaria de Ciência, Tecnologia e Inovação e do Complexo Econômico-Industrial da Saúde (Sectics) do Ministério da Saúde. A medida, além de violar o art. 61 da Constituição ao invadir competência exclusiva do Executivo para criar órgãos da administração pública, gera um claro conflito de interesses ao subordinar a ética em pesquisa a uma área responsável por promover estudos, inovação e parcerias com a indústria. Essa alteração desmonta o Sistema formado pela Comissão Nacional de Ética em Pesquisa (Conep) e a rede de Comitês de Ética em Pesquisa (CEPs), que por mais de três décadas garantiu controle social, revisão independente dos protocolos de pesquisa e proteção efetiva aos participantes.
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A disputa não é abstrata: ocorre em um país historicamente usado como campo de testes clínicos pela Big Pharma. O Brasil combina população diversa, uma ampla rede hospitalar e de instituições de pesquisas, além do SUS e de múltiplos agravos de saúde, crônicos, infecciosos e epidêmicos. Somado à profunda desigualdade social que empurra pessoas para ensaios clínicos como única chance de acesso ao cuidado. Esse cenário atrai grandes indústrias farmacêuticas, que também se beneficiam da possibilidade de compras públicas e da judicialização da saúde para introduzir medicamentos caros no sistema público. Essa vulnerabilidade, longe de ser enfrentada, passa a ser instrumentalizada pela nova lei.
Lenacapavir expõe injustiça: quem participa dos testes fica sem medicamento
O debate ganha ainda mais relevância diante de episódios recentes, como o caso do lenacapavir, medicamento inovador de longa duração para prevenção do HIV, eleito pela revista Science como a descoberta científica de 2024. Embora pessoas brasileiras tenham participado dos ensaios clínicos, toda a comunidade foi excluída da licença voluntária da Gilead, impedindo o acesso a versões genéricas de baixo custo. Não é admissível que indivíduos contribuam com pesquisas, assumam riscos e tenham seus direitos rebaixados justamente quando mais precisam de proteção.
A exclusão evidencia o risco central trazido pela nova lei: a retirada da obrigação de garantir acesso pós-estudo. O texto permite que patrocinadores encerrem o fornecimento do medicamento logo após o ensaio, inclusive transferindo ao SUS a responsabilidade pelo tratamento contínuo. Assim, uma pessoa voluntária pode ajudar a comprovar a segurança e a eficácia de um medicamento como o lenacapavir e, ainda assim, ficar sem acesso ao próprio tratamento que ajudou a desenvolver.
Quem se submete a um ensaio clínico não o faz apenas por si, mas também pelo outro — pela comunidade que enfrenta o mesmo agravo e espera por novas opções de cuidado. A nova lei, porém, transforma essa solidariedade em dupla frustração. O acesso pós-estudo agora tem limite de cinco anos, e a decisão sobre a continuidade do fornecimento fica nas mãos do próprio patrocinador (a Gilead – que já excluiu a possibilidade de compartilhar os benefícios); depois desse período, o medicamento só será mantido se incorporado pelo SUS. Novos medicamentos entram no mercado sob monopólios e a preços exorbitantes, o SUS dá conta dessa demanda?
A nova legislação flexibiliza salvaguardas éticas fundamentais. Autoriza a inclusão de pessoas em situação de emergência sem consentimento prévio (Art. 18, §6), permite remuneração de voluntários saudáveis (Art. 20, §2º) — prática que afronta o princípio da dignidade humana — e não estabelece mecanismos para assegurar representatividade e proteger populações vulnerabilizadas, como havia nas Resoluções do CNS. Em um país marcado por desigualdades, isso abre espaço para exploração de pessoas negras e pobres, transformando precariedade em oportunidade de lucro.
Esse conjunto de mudanças desmonta conquistas que fizeram do Brasil uma referência internacional em ética em pesquisa. Ao enfraquecer o controle social e deslocar responsabilidades ao SUS, a Lei nº 14.874/2024 ameaça direitos fundamentais. Defender sua inconstitucionalidade no STF é defender o direito à saúde, à autonomia dos corpos e o respeito à dignidade humana — bases indispensáveis para qualquer produção científica que se pretenda justa.
Em um país com profunda desigualdade racial e territorial, o risco é claro: transformar precariedade em oportunidade de negócio. Foi assim no caso Merck, nos anos 1990, quando pessoas vivendo com HIV — muitas delas em situação de extrema vulnerabilidade — foram incluídas em um estudo conduzido no Brasil sem garantias adequadas de acompanhamento e acesso posterior ao tratamento.
Esse episódio marcou profundamente a história da ética em pesquisa no país e evidenciou como desigualdades sociais, urgência terapêutica e ausência de salvaguardas institucionais podem abrir espaço para violações graves de direitos.
Foi justamente para evitar que abusos como aquele se repetissem que o Sistema CEP/CONEP foi criado, para assegurar controle social, fiscalização independente e proteção efetiva aos participantes. Ao flexibilizar salvaguardas e retirar a governança ética desse espaço de autonomia, a nova lei apaga 30 anos de história e reacende riscos já conhecidos — que a sociedade brasileira, duramente, aprendeu a enfrentar.
Ao deslocar responsabilidades para o SUS e enfraquecer mecanismos de controle social, a Lei nº 14.874/2024 ameaça o direito constitucional à saúde, fragiliza a autonomia dos corpos e compromete a produção científica baseada em justiça social. A luta no STF é, portanto, mais do que jurídica: é a defesa de que o povo brasileiro não é cobaia, que vidas não são insumos descartáveis da inovação e que nenhum avanço científico pode ser construído às custas de quem o torna possível.
*Erly Guedes é jornalista, mestre em Comunicação pela Universidade Federal Fluminense (UFF) e assistente de comunicação do Grupo de Trabalho sobre Propriedade Intelectual da Rede Brasileira pela Integração dos Povos (Rebrip).
**Susana van der Ploeg é advogada, mestre em Direito e Inovação pela Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF), doutoranda em Direito e Atividades Econômicas pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj), coordenadora do Grupo de Trabalho sobre Pro**Este é um artigo de opinião e não necessariamente representa a linha editorial do Brasil do Fato.priedade Intelectual da Rede Brasileira pela Integração dos Povos (Rebrip).
**Este é um artigo de opinião e não necessariamente representa a linha editorial do Brasil do Fato.
