O filme Ainda Estou Aqui, de Walter Salles, além de orgulhar o Brasil com nosso primeiro Oscar, teve a felicidade de retratar e trazer ao debate público aquela que talvez seja a pior das formas de luto para uma família – o luto eterno de quem se viu privado até mesmo do direito milenar, respeitado em todos os credos, da despedida final de um ente querido.
A dignidade de Eunice Paiva, magistralmente interpretada por Fernanda Torres, reside justamente em seu inconformismo por não receber uma resposta oficial sobre o paradeiro de seu companheiro de vida, o ex-deputado Rubens Paiva, covardemente preso e assassinado pelo aparato da ditadura militar, sem que seu corpo jamais tenha sido encontrado e devolvido à família.
O crime de desaparecimento forçado é um importante tema de direitos humanos, pois, infelizmente, foi uma prática recorrente de regimes autoritários, no Brasil e no mundo, para se livrar de opositores sem deixar vestígios ou prestar informações sobre o que ocorreu a pessoas que, muitas vezes, estavam sob custódia do Estado.
No entanto, essa prática criminosa e desumana não está restrita a fins políticos. Se observarmos as estatísticas sobre mortes violentas ocorridas no País nos últimos anos, encontraremos uma leve queda no número de homicídios, em contraste com um aumento no número de desaparecimentos, o que sugere um movimento pendular entre os registros.
Segundo o Anuário Brasileiro da Segurança Pública de 2025, no ano anterior houve uma redução de 5,4% na taxa de mortes violentas intencionais no País, ao passo que a taxa de desaparecimentos cresceu 4,9% no mesmo período. “Diante do crescimento expressivo dos registros de desaparecimentos no Brasil, especialmente em regiões marcadas por elevadas taxas de homicídio e por disputas de organizações criminosas, torna-se urgente reconhecer que essa dinâmica pode estar ocultando uma face ainda mais perversa da criminalidade: a execução seguida da ocultação de cadáver”, aponta o estudo.
Os fatos do passado e do presente mostram ser absolutamente necessária a tipificação do crime de desaparecimento forçado em nosso ordenamento jurídico, até porque o País é signatário de tratados internacionais como a Convenção Interamericana sobre Desaparecimento Forçado de Pessoas (CIDFP), adotada pela OEA em 1994, que exige o enquadramento desse crime nos códigos penais de cada país.
O Brasil assumiu esse compromisso por decisão própria do Poder Legislativo, no exercício de sua competência constitucional prevista no artigo 49, I, da Carta, através do Decreto Legislativo 127/2011. Ao ratificar a Convenção em nome do Estado brasileiro, o Congresso Nacional vinculou-se às obrigações legislativas dela decorrentes, fenômeno jurídico chamado de autovinculação legislativa.
Nesse sentido, o art. III da CIDFP determina a tipificação obrigatória do crime de desaparecimento forçado de pessoas, sua definição como crime permanente ou continuado, a adoção de penas compatíveis à gravidade da conduta e a tomar medidas complementares para sua prevenção e repressão.
O art. II da referida Convenção define o desaparecimento forçado como “a privação de liberdade de uma pessoa ou mais pessoas, seja de que forma for, praticada por agentes do Estado ou por pessoas ou grupos de pessoas que atuem com autorização, apoio ou consentimento do Estado, seguida de falta de informação ou da recusa a reconhecer a privação de liberdade ou a informar sobre o paradeiro da pessoa, impedindo assim o exercício dos recursos legais e das garantias processuais pertinentes”.
É este conceito que estamos tentando introduzir em nossa legislação através do PL 6.240/2013, do qual sou relator na Câmara. O projeto visa acrescentar o art. 149-A no Código Penal brasileiro para tipificar o delito, além de incluí-lo no rol da Lei 8.072/1990 para considerá-lo crime hediondo, o que lhe tornará insuscetível de anistia, graça ou indulto.
O desaparecimento forçado não é um crime apenas contra um indivíduo ou grupo de indivíduos, mas contra a Humanidade, nos termos do art. 7º, I, i, do Estatuto de Roma do Tribunal Penal Internacional, do qual o Brasil também é signatário (Decreto 4.388/2002). Por sua gravidade, por atentar contra valores fundamentais da sociedade, torna-se também um crime imprescritível.
É importante frisar que o crime de desaparecimento forçado tem natureza permanente ou continuada, porque se perpetua no tempo à medida em que até mesmo informações sobre a vítima são sonegadas aos familiares, causando uma situação de angústia e sofrimento contínuos.
Tal característica ganha particular relevância jurídica na realidade brasileira em razão da Lei de Anistia, que extinguiu a punibilidade de crimes políticos ou conexos cometidos no período compreendido entre 2 de setembro de 1961 e 15 de agosto de 1979.
Em alentado parecer sobre o PL 6.240/2013, os professores Siddharta Legale e Carolina Rolim defendem que as normas não são contraditórias, justamente pelo caráter continuado do desaparecimento forçado. “Como nos crimes permanentes a que se referem o PL a ação criminosa se prolonga no tempo por vontade do agente, até que sejam terminados os efeitos, não há que se falar em incompatibilidade com a Lei de Anistia, visto que os crimes de desaparecimento forçado, por sua natureza, não estão cobertos pela referida Lei em função da sua natureza permanente”, lecionam.
A tipificação penal do crime de desaparecimento forçado e sua caracterização como crime hediondo é uma justa reivindicação de organizações e pessoas que lutam pelo respeito aos direitos humanos no Brasil. Afinal, a dignidade da pessoa humana é um dos fundamentos de nossa República e pedra angular do sistema de direitos fundamentais erigidos na Constituição Federal.
O direito de conhecer o paradeiro e as condições em que se encontra um ente querido, inclusive para a última despedida, é inalienável, pois inerente à própria condição humana. “O desprezo e o desrespeito pelos direitos humanos resultaram em atos bárbaros que ultrajaram a consciência da humanidade”, diz a Declaração Universal dos Direitos Humanos da ONU. Urge que saibamos honrá-la para impedir que a barbárie siga assombrando famílias no presente.
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