Em uma das últimas edições de Cartas Marcadas, fiz uma radiografia dos escândalos que cercam o Republicanos, um partido que passou a ocupar lugar recorrente em investigações e operações que apuram a relação de políticos com o crime organizado.
A sucessão desses episódios ajudou a revelar não apenas casos isolados, mas um padrão de atuação política. Na edição de hoje, volto a esse partido por outro motivo, mas igualmente central: o debate em torno do chamado PL da Dosimetria.
A proposta que mexe com o tratamento jurídico dos crimes contra o Estado de Direito e com as consequências impostas aos responsáveis pelos atos de 8 de Janeiro é de autoria do deputado Marcelo Crivella, ex-prefeito do Rio de Janeiro. Qual o seu partido? Sim, o Republicanos.
É verdade que Crivella pedia a anistia e o texto que foi aprovado pela Câmara não concede o perdão, mas sim a redução de penas dos envolvidos. Por isso, o ex-prefeito do Rio acabou perdendo protagonismo no debate para o relator Paulinho da Força, do Solidariedade de SP.
Talvez seja por esse motivo que uma declaração de Crivella, fundamental para entender o perigo da aprovação do PL da Dosimetria, tenha passado despercebida. É sobre ela que vamos nos debruçar. Vamos aos fatos.
Nos últimos dias, ao acompanhar os canais oficiais de comunicação do Republicanos na Câmara dos Deputados, encontrei um vídeo publicado pelo próprio partido que lança luz sobre o perigo da aprovação do chamado PL da Dosimetria.
Nele, o deputado federal Marcelo Crivella, autor da iniciativa que deu origem ao atual PL da Dosimetria, comenta os efeitos concretos da nova versão do projeto.
Ao falar sobre a tramitação do texto, Crivella afirma que o cenário ideal, em sua avaliação, teria sido a aprovação de uma anistia específica para aquele episódio. Segundo o deputado, a ausência da anistia levou à construção de uma alternativa legislativa que altera a forma de cálculo das penas, produzindo efeitos semelhantes.
Ele reconhece que, apesar de aparentemente mais amena, a nova proposta faz com que se ocorrerem novas manifestações marcadas por depredação e ataques às instituições, as punições aplicáveis já serão aquelas previstas na legislação modificada agora.
Crivella ressalta que o projeto impede a soma de penas para crimes cometidos dentro de um mesmo contexto, o que inviabiliza, nas palavras dele, a aplicação de “penas altíssimas”.
Ao avaliar essa consequência, o deputado admite que o PL da Dosimetria acaba incentivando manifestações como os atos golpistas de 8 de Janeiro, por reduzir o impacto penal de ações contra o estado.
No mesmo vídeo, o parlamentar explica que a anistia defendida por seu campo político teria alcance restrito ao 8 de Janeiro, incluindo postagens em redes sociais, jornalistas, manifestantes, o ex-presidente Jair Bolsonaro e oficiais-generais envolvidos naquele episódio, sem se estender a outros eventos.
A mudança na dosimetria das penas surge, assim, não só como um caminho indireto para aliviar condenações passadas, mas também para moldar o tratamento jurídico de futuras tentativas de ruptura – o que torna o texto, em sua visão, pior do que o original.
“O ideal teria sido a gente aprovar a anistia, porque se no futuro houver outras manifestações como aquela quebradeira toda, as penas serão essas que agora estão sendo modificadas. Não vai poder mais somar as penas todas e dar penas altíssimas. Então nesse aspecto, realmente, o projeto acaba, vamos dizer assim, de certa forma, incentivando essas manifestações”, admitiu Crivella.
A declaração tem relevância porque o PL da Dosimetria será analisado nesta semana pela Comissão de Constituição e Justiça do Senado, sob relatoria do senador Esperidião Amin, do PP do Espírito Santo. E a proposta, aprovada pela Câmara, tem sido celebrada como uma opção menos ofensiva à estabilidade democrática do país. Isso é falso.
Embora o texto mantenha percentuais mais elevados para crimes hediondos, milícias e organizações criminosas, o contraste com o tratamento dado aos crimes contra o Estado de Direito é evidente. Na prática, a tentativa de golpe passa a contar com um caminho penal mais curto, previsível e permeado por mecanismos de redução de pena.
Ao reconhecer publicamente que esse desenho legislativo pode incentivar novas ações semelhantes às de janeiro de 2023, Marcelo Crivella explicita um efeito desconsiderado por muitos analistas: uma nova tentativa de golpe no país, caso ocorra, seria punida com muito menos firmeza.
O PL da Dosimetria, portanto, pode ser até mais lesivo do que a proposta de anistia porque não apenas revisa o passado, mas também estabelece parâmetros que influenciam diretamente a punição a futuras investidas contra a democracia.
Às vésperas da votação no Senado, a proposta coloca o Congresso diante de uma escolha que transcende o debate penal. Trata-se de decidir se o 8 de Janeiro será tratado como um marco a partir do qual se reforçam os limites institucionais ou como um episódio cujas consequências podem ser diluídas, abrindo espaço para que a história se repita.
