O livro “É Assim Que Acaba” (It Ends With Us), de Colleen Hoover, publicado em 2016, tornou-se um fenômeno global ao tratar de forma direta e sensível temas como violência doméstica, relacionamentos abusivos e ciclos de trauma familiar. Embora tenha elementos de romance, sua força está em mostrar como o abuso pode surgir em relações aparentemente perfeitas e como romper esse ciclo exige coragem, apoio e reconstrução emocional.
O tema é urgente: nos Estados Unidos, mais de 10 milhões de pessoas sofrem violência doméstica por ano, e 1 em cada 3 mulheres já foi vítima de agressão física, estupro ou perseguição por parceiros íntimos. No Brasil, 3 em cada 10 mulheres já viveram situações de violência doméstica, e o país está entre os que mais registram feminicídios no mundo, com 1.450 casos em 2024, número que ainda é subnotificado.
Nas telinhas
O sucesso do livro impulsionou sua adaptação cinematográfica, lançada em agosto de 2024. Estrelado por Blake Lively como Lily Bloom e dirigido por Justin Baldoni, que também interpreta Ryle Kincaid, o filme acompanha a jornada de Lily, uma jovem que cresce em um lar violento e acaba presa em um relacionamento abusivo. Para romper o ciclo, ela revisita seu passado e reencontra seu primeiro amor, Atlas Corrigan (Brandon Sklenar).
No Brasil, o longa está disponível para aluguel e compra em plataformas digitais como Amazon Prime Video, Apple TV, Google Play Filmes e YouTube Filmes. Desde fevereiro, também integra o catálogo do HBO Max.
Espinhos e farpas
Apesar da relevância do tema, o filme acabou sendo eclipsado pelas polêmicas envolvendo seus protagonistas. As acusações de assédio e de ambiente de trabalho hostil feitas por Blake Lively contra Justin Baldoni desencadearam uma disputa judicial que dominou os holofotes, dividiu Hollywood e desviou a atenção do público da mensagem central da obra.
Em 20 de janeiro de 2025, Baldoni processou o New York Times por difamação, invasão de privacidade, fraude promissória e quebra de contrato implícito, pedindo US$ 250 milhões de indenização. Ele alegou que o jornal publicou um artigo baseado em uma narrativa “autointeressada e não verificada” apresentada por Lively, ignorando evidências que, segundo ele, poderiam refutar as acusações.
O texto em questão, intitulado “‘We Can Bury Anyone’: Inside a Hollywood Smear Machine”, descrevia alegações de conduta inadequada e detalhava supostas estratégias de manipulação de imagem. Baldoni acusou o jornal de retirar trechos de contexto e até mesmo alterar comunicações para favorecer a versão da atriz, o que, segundo ele, prejudicou gravemente sua reputação.
Em março, um juiz federal atendeu a um pedido do New York Times e suspendeu temporariamente a fase de coleta de provas, considerando que havia base jurídica suficiente para questionar a viabilidade do processo. Poucos meses depois, em 9 de junho , o mesmo juiz, Lewis J. Liman, rejeitou integralmente não apenas essa ação de US$ 250 milhões contra o jornal, mas também o processo de US$ 400 milhões movido por Baldoni contra Blake Lively.
O magistrado concluiu que as declarações de Lively estavam legalmente protegidas e que Baldoni não conseguiu comprovar a chamada “má-fé real” (actual malice), requisito essencial em casos de difamação que envolvem figuras públicas nos Estados Unidos.
No capítulo mais recente da briga, no dia 15, Lively encerrou uma investigação aberta por sua equipe jurídica contra três youtubers acusados de participar da suposta “campanha de difamação” atribuída por ela a Justin Baldoni. A decisão, revelada pelo Radar Online e classificada pelo site como “uma derrota” da atriz, foi interpretada como um recuo estratégico para concentrar esforços no julgamento principal marcado para março de 2026.
Marketing de frufru
Antes mesmo de a troca de farpas entre os protagonistas se tornar pública, a campanha de divulgação do filme já vinha sendo criticada por seu distanciamento do tema central. Em vez de incentivar discussões sobre violência doméstica, a promoção apostou em ações superficiais, como eventos com estética floral e figurinos luxuosos, em total contraste com a trajetória da protagonista Lily Bloom, uma mulher de classe média que luta para reconstruir a própria vida.
Essa desconexão entre a proposta original do livro e a forma como o filme foi vendido ficou ainda mais evidente nas estratégias publicitárias. A produção investiu em pop-ups em shoppings que recriavam a floricultura da personagem como cenários “instagramáveis”, parcerias com marcas de moda de alto padrão e até trilhas sonoras com músicas de Taylor Swift, transformando a história em um produto aspiracional e diluindo seu peso crítico.
Houve ainda ações inusitadas, como caças ao tesouro em cidades como Nova York e Los Angeles e um cruzamento promocional com “Deadpool & Wolverine”, estrelado por Ryan Reynolds, marido de Blake Lively.
Enquanto tudo isso ocorria, não foram promovidos eventos, debates ou entrevistas que abordassem o tema central da obra com especialistas em violência doméstica. Assim, uma história sobre abuso acabou transformada em um romance “vendável”, tratado mais como fantasia escapista do que como ponto de partida para uma discussão social urgente.
O feminismo liberal de Blake Lively
Durante a campanha de divulgação, Blake Lively evitou qualquer menção à violência doméstica, tema central do filme. Em suas entrevistas, o foco permaneceu nos figurinos, nos bastidores e em sua relação com o diretor Justin Baldoni, sem qualquer aprofundamento sobre a trama ou sobre a mensagem da obra.
Essa postura gerou críticas de ativistas e jornalistas, que esperavam de uma atriz — e também produtora executiva do longa — um posicionamento mais firme diante de um assunto tão delicado.
O silêncio de Lively acabou sendo interpretado como sintoma de um feminismo liberal típico de Hollywood, que exalta a imagem pessoal e o empoderamento estético, mas evita embates políticos e sociais capazes de comprometer contratos publicitários e parcerias comerciais.
O figurino da personagem Lily também virou alvo de debates. Vestidos florais de marcas de luxo usados por Lively destoavam da realidade da protagonista, uma empreendedora de classe média que abre uma pequena floricultura. Para fãs e críticos, essa escolha reforçou a ideia de que o filme preferiu glamourizar sua estética em vez de representar com fidelidade as dificuldades sociais presentes na obra original.
O feminismo “performático” de Justin Baldoni
Justin Baldoni construiu sua reputação como defensor de um “feminismo masculino”, impulsionada pelo sucesso de seu livro “Man Enough”, sem versão em português, e por discursos que buscavam desconstruir padrões de masculinidade tóxica.
Contudo, as acusações feitas por Blake Lively — que incluem invasão de privacidade e condutas inadequadas durante as filmagens — abalaram essa imagem e expuseram contradições profundas.
O caso ilustra de forma contundente a crítica ao chamado “feminismo performático” entre homens: um engajamento discursivo que funciona como capital simbólico e estratégia de autopromoção, mas que não se traduz em práticas concretas.
Baldoni, que se apresentava como aliado das pautas de gênero, agora se vê no centro de um episódio que desafia a autenticidade de sua narrativa pública.
Lively vs Baldoni: Escândalo em Hollywood — o documentário da HBO Max
A HBO Max Brasil estreou no último dia 26, o especial “Lively vs Baldoni: Escândalo em Hollywood“, parte da franquia documental “Vs” da Warner Bros. Discovery. Com duração aproximada de 60 minutos, a produção analisa a polêmica envolvendo a atriz Blake Lively e o diretor Justin Baldoni, combinando entrevistas com especialistas, análises da mídia e depoimentos de pessoas próximas ao caso.
O documentário adota o formato de “escuta dupla”, apresentando diferentes perspectivas sobre o episódio e explorando as versões em disputa de forma indireta, sem entrevistas diretas com os protagonistas. Essa abordagem, que busca reconstruir o debate público sem tomar partido explícito, reacende discussões sobre os limites da imparcialidade jornalística em situações que envolvem denúncias de assédio e violência de gênero.
Além dos depoimentos de terceiros, a produção traz comentários de especialistas em mídia e gênero e examina a repercussão nas redes sociais, oferecendo uma visão crítica sobre como escândalos dessa natureza são narrados e consumidos pelo público.
O caso Lively x Baldoni escancara como disputas de bastidores e egos de estrelas do cinema podem ofuscar pautas urgentes, como a violência doméstica, convertendo uma história de denúncia e reconstrução em mero espetáculo midiático.
Ao mesmo tempo, revela os limites entre um ativismo pautado na imagem e um compromisso efetivo com as causas que se afirma defender — um dilema que ultrapassa Hollywood e ecoa em outras esferas públicas.
Diante do barulho das polêmicas, o verdadeiro desafio é resgatar o foco no essencial: lembrar que, longe dos holofotes, milhões de vítimas continuam aguardando visibilidade, empatia e, sobretudo, mudanças concretas.
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