Mais de 70 mil pessoas participaram da Cúpula dos Povos, movimento paralelo à COP, que reuniu coletivos ambientais, indígenas, quilombolas e ribeirinhos, entre 12 e 16 de novembro na Universidade Federal do Pará (UFPA). O evento contou com uma programação extensa no campus, além de manifestações nas ruas da capital paraense. “O que nós trouxemos com essa mobilização é que não adianta falar de justiça climática dissociada das outras justiças”, afirma Ayala Ferreira, integrante da comissão organizadora da Cúpula dos Povos e da coordenação nacional do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MTST).
O encerramento foi marcado pela entrega da Carta Política da Cúpula dos Povos e a Carta das Infâncias para o presidente da COP 30, embaixador André Corrêa do Lago. Também acompanharam a cerimônia, outras autoridades relevantes para o debate climático, como a ministra de Estado do Meio Ambiente e Justiça do Clima, Marina Silva, a ministra dos Povos Indígenas, Sônia Guajajara, e o reitor da UFPA, Gilmar Pereira da Silva.
No balanço final feito pela organização da Cúpula, estima-se que mais de 1.500 organizações signatárias da Carta Política aderiram ao movimento; lideranças e representantes de 60 países estiveram presentes; 25 mil pessoas realizaram o credenciamento e cerca de 20 mil pessoas circularam pelo espaço universitário diariamente. Além disso, durante a programação foram servidas, aproximadamente, 105 mil refeições pela Cozinha Solidária.
Apesar desse engajamento expressivo, Ayala avalia que a COP tende a refletir a influência de interesses privados e de grandes corporações, incluindo setores como petróleo, mineração e agronegócio, que atuam fortemente nos bastidores das negociações. A construção de um espaço paralelo de discussão para ela é, portanto, uma forma de fazer pressão “de fora para dentro” nas negociações climáticas que acontecem a portas fechadas.
Essa estratégia de articulação também se refletiu na elaboração da carta política da Cúpula. Sebastián Muñoz, representante da organização britânica War on Want e integrante da Comissão Política da Cúpula dos Povos, explica que a elaboração da carta de encerramento foi um processo intenso e coletivo. Para ele, “o texto teve seu próprio percurso”, construído a partir de seis eixos temáticos, que foram conduzidos por processos de facilitação. O líder afirma que foi um trabalho profundamente participativo, “acho que a participação estava no centro do que estávamos fazendo. Não se trata apenas de chegar a uma declaração, trata-se do processo para chegar lá. E encontrar consenso e unidade não é fácil, mas pode ser lindo”.
A Declaração da Cúpula dos Povos rumo a COP 30 é resultado de um trabalho de dois anos de debates, estudos, intercâmbios e depoimentos. Foi redigida à várias mãos, sempre tendo como prioridade a diversidade de culturas, gêneros e países. “Assumimos a tarefa de construir um mundo justo e democrático, com bem viver para todas e todos. Somos a unidade na diversidade”, diz a carta.
Em resumo, a Cúpula dos Povos compreende que
- O modo de produção capitalista é a causa principal da crise climática crescente.
- As comunidades periféricas são as mais afetadas pelos eventos climáticos extremos e o racismo ambiental.
- As indústrias de mineração, energia, das armas, o agronegócio e as Big Techs são as principais responsáveis pela catástrofe climática e as que mais se beneficiam.
- Todos os projetos financeiros devem estar sujeitos a critérios de transparência, acesso democrático, participação e benefício real para as populações afetadas.
- O fracasso do multilateralismo é evidente, as conferências mundiais nunca enfrentam as causas estruturais da crise ambiental.
- A transição energética está sendo implementada sob a lógica capitalista, visando o lucro e sem efetivamente reduzir as emissões de gases de efeito estufa.
- A privatização, mercantilização e financeirização dos bens comuns e serviços públicos contrariam frontalmente os interesses populares.
Ayala Ferreira acredita que a Declaração apresenta uma leitura concreta e crítica da realidade, mas frisa que propor soluções é tão importante quanto reconhecer os problemas. “Nossas soluções passam fundamentalmente pela diversidade, pelos territórios, pelas práticas das comunidades que compuseram a Cúpula dos Povos”.
A primeira proposta é o enfrentamento à privatização dos recursos naturais e das fontes de energia, considerados pela Cúpula, bens comuns dos povos. Também apelam aos governos pelo fim da exploração de combustíveis fósseis.
“Lutamos pelo financiamento público e taxação das corporações e dos mais ricos. Os custos da degradação ambiental e das perdas impostas às populações devem ser pagos pelos setores que mais se beneficiam desse modelo”, afirma a Declaração.
Exigem a demarcação e proteção de territórios indígenas, políticas de desmatamento zero e recuperação ambiental. Além da reforma agrária, do incentivo à agroecologia e do respeito aos saberes ancestrais.
Apontam que o combate ao racismo ambiental depende da construção de cidades mais justas e periferias vivas, com investimentos em moradia, saneamento, arborização e outras políticas urbanas. Também ressaltam que a transição climática e energética deve incluir participação direta da população e abraçar a diversidade.
“Exigimos o fim das guerras e a desmilitarização. Que todos os recursos financeiros destinados às guerras e à indústria bélica sejam revertidos para a transformação desse mundo. Que as despesas militares sejam direcionadas à reparação e recuperação de regiões atingidas por desastres climáticos”, diz a Declaração.
Além disso, a Cúpula dos Povos aponta como solução para a crise climática a reparação integral das perdas e danos causados por projetos destrutivos, como barragens, mineração, combustíveis fósseis e desastres climáticos. E reivindica uma transição justa, soberana e popular, que assegure direitos trabalhistas, condições dignas de trabalho, liberdade sindical e proteção social, destacando a importância dos trabalhos de cuidado e do papel das mulheres na sustentação da economia.
“Exigimos que o financiamento climático internacional não passe por instituições que aprofundam a desigualdade entre Norte e Sul, como o FMI e o Banco Mundial. Ele deve ser estruturado de forma justa, transparente e democrática. Não são os povos e países do Sul global que devem continuar pagando dívidas às potências dominantes”, continua a carta.
Por fim, o fórum denuncia a contínua criminalização dos movimentos sociais, a perseguição, o assassinato e desaparecimento de lideranças que defendem seus territórios. O documento pede o fortalecimento de mecanismos internacionais de proteção aos direitos dos povos e aos ecossistemas e defende a criação de um instrumento jurídico vinculante que obrigue empresas transnacionais a respeitá-los.
Apesar dos avanços alcançados, as lideranças reconhecem que a Cúpula enfrentou obstáculos importantes. Um dos principais foi garantir condições adequadas para receber os participantes durante a semana. “Queríamos muito virar a chave da infraestrutura para cuidar dos grandes temas políticos e da mobilização das pessoas, mas essas pendências nos acompanharam até o dia 16. Mesmo assim, acho que é importante reconhecer que houve muitos esforços”, relatou Ayala.
Outro desafio foi a integração entre as diversas iniciativas populares. Embora tenham acontecido debates internos e a participação de alguns dirigentes de redes, como a Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira (COIAB), a interlocução plena entre os grupos não foi alcançada. “Só para ter uma ideia, na Aldeia COP, ao lado da Universidade, estavam 3 mil indígenas de todo o mundo, e nós tivemos pouco ou quase nenhum contato de interação, a não ser na marcha”, explicou ela.
Por fim, a capacidade de incidência nos espaços oficiais da COP também foi desafiadora. Apesar do empenho dos movimentos em conquistar abertura e diálogo, “ninguém assumiu muita radicalidade sobre os pontos que apresentámos das soluções”, apontou a liderança. Ela reconhece que, mesmo com toda a mobilização feita pela sociedade civil, “não alcançamos a ação que o contexto histórico demanda”.
Muñoz completa que por mais que haja tantos empecilhos, algumas ações populares tiveram impacto direto. “O fato de os Munduruku terem organizado um protesto e bloqueado a entrada, levando diretamente à demarcação de terras, é, de certa forma, o espírito desta COP”.
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