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‘Machosfera’ brasileira explode em ódio contra mulheres após pandemia, mostra estudo

by admin

No Dia Internacional para a Eliminação da Violência contra as Mulheres, um estudo inédito conclui que comunidades digitais dedicadas ao ódio e à violência contra o gênero feminino no Telegram cresceram de forma alarmante no Brasil, multiplicando por quase 600 vezes o volume de conteúdos entre 2019 e 2025. A pesquisa, realizada por uma equipe de especialistas da Fundação Getulio Vargas (FGV), revela um ecossistema organizado – batizado de “machosfera” – que não só propaga misoginia, mas também serve como porta de entrada para teorias conspiratórias, neonazismo e um mercado lucrativo de cursos e mentorias baseados em discursos de ódio.

Os dados são frutos de uma pesquisa concluída e publicada nesta data, intitulada “Redes de ódio e violência contra mulheres: mapeamento da machosfera brasileira no Telegram e modelos de monetização”. Os autores são Julie Ricard (coordenadora do estudo e pesquisadora do Laboratório de Estudos sobre Desordem Informacional e Políticas Públicas – DesinfoPop/CEAPG/FGV), Ergon Cugler de Moraes Silva (mestre em Administração Pública e conselheiro da Presidência da República), Mario Aquino Alves (professor titular da FGV EAESP e bolsista do CNPq), Guilherme Celestino (doutor em Estudos Portugueses e Brasileiros pelo King’s College London), Gabriel Rocha (graduando em Administração Pública na FGV) e Stefanny Vitória (graduanda em Administração Pública na FGV com experiência em terceiro setor). A equipe analisou mais de 7 milhões de mensagens publicadas em 85 comunidades no Telegram, de setembro de 2015 a novembro de 2025, destacando padrões de radicalização e interseções com outros preconceitos.

De acordo com o estudo, a machosfera brasileira abrange mais de 220 mil usuários distribuídos em cinco categorias principais: identidades masculinistas (42 comunidades, com 47.869 usuários e 3,5 milhões de conteúdos), desenvolvimento pessoal masculinista (14 comunidades, 80.943 usuários), guerra cultural (19 comunidades, 35.381 usuários), misoginia explícita (4 comunidades, 17.443 usuários e quase 3 milhões de conteúdos) e criptos e investimentos (6 comunidades, 39.618 usuários). No total, foram identificados 1,69 milhão de publicações e 5,33 milhões de comentários, somando 7.029.272 conteúdos.

O crescimento exponencial é um dos achados mais chocantes: em 2019, antes da pandemia de Covid-19, as comunidades registraram 5.546 conteúdos. Em 2025, esse número saltou para 3.313.375 – um aumento de 597,44 vezes, ou 59.643,51%. “A pandemia foi a porta de entrada para comunidades da machosfera crescerem aproximadamente 600 vezes”, afirma o relatório, atribuindo o boom ao isolamento social e ao aumento do tempo online.

Julie Ricard, coordenadora da pesquisa, enfatiza o caráter estrutural do fenômeno: “Nosso estudo revela um ecossistema de ódio contra mulheres muito maior e mais organizado do que se imaginava. Mapeamos mais de 220 mil usuários em 85 comunidades que transformam frustração masculina, racismo e ressentimento de classe em violência digital direcionada”. Ela acrescenta que o ódio muitas vezes começa como autodepreciação: “Todo esse ódio começa como ódio contra si mesmos. Os próprios homens publicam conteúdos autodepreciativos, como os ‘bingos incel’, antes de direcionar essa violência para mulheres e para outros homens. As normas tradicionais de gênero estão adoecendo a todos”.

A análise vai além da misoginia isolada, mostrando interseções perigosas. Ataques contra mulheres frequentemente se entrelaçam com racismo e classismo, formando um “projeto identitário supremacista”. Pessoas trans são alvos centrais, com publicações que combinam transfobia, homofobia e linguagem desumanizadora, como “aberrações da natureza”. Além disso, as comunidades funcionam como funil para radicalização: foram encontrados 24.218 links de convite para grupos externos, incluindo 23.803 para teorias conspiratórias (como anti-vacinas, QAnon e Nova Ordem Mundial) e 415 para neonazismo. A categoria de “identidades masculinistas” lidera com 12.375 convites.

Outro mecanismo destacado é o uso do humor para normalizar a violência. A estética “clown world/honk” e o discurso de “é só piada” reduzem os custos sociais do ódio, facilitam a circulação de códigos extremistas e fortalecem a coesão grupal. “Políticas públicas e pesquisas devem reconhecer o humor como mecanismo estratégico de normalização do ódio, não como ruído irrelevante”, recomenda o estudo.

Por fim, a pesquisa expõe a monetização do ódio: mais de 20 mil referências a mentorias, cursos, workshops e infoprodutos que transformam inseguranças masculinas em lucro. “Também encontramos um mercado lucrando com essa radicalização. Mentorias, cursos, livros e infoprodutos transformam misoginia em negócio, monetizando inseguranças masculinas e ampliando a circulação de discursos violentos no Brasil”, alerta Ricard.

O estudo, disponível em versão completa e sumário executivo, inclui links para dashboards interativos sobre conspirações. Os autores defendem ações urgentes em políticas públicas para combater essa “desordem informacional”, especialmente em plataformas como o Telegram, onde a moderação é limitada.

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