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Aliado de Trump, governo Bolsonaro monitorou apoio militar de Putin para Maduro

by admin

Sob o governo de Jair Bolsonaro, a Agência Brasileira de Inteligência (Abin) monitorou, mapeou e alertou para o apoio militar que Vladimir Putin estava costurando ao governo de Nicolás Maduro. Num relatório de 2019, o serviço secreto nacional apontava como o Kremlin havia construído uma aliança militar com Caracas.

A informação faz parte de documentos da agência e que foram obtidos após uma longa batalha judicial pela Fiquem Sabendo, organização sem fins lucrativos especializada em transparência pública.  Ao longo dos próximos dias, o ICL Notícias trará com exclusividade dezenas de informes, relatórios e dados até hoje mantidos como confidenciais pela Abin.

Em 2019, Bolsonaro havia estabelecido uma guinada na política externa brasileira, alinhando-se ao governo de Donald Trump. Naquele momento, em Washington e Brasília proliferaram reuniões para definir estratégias de pressão sobre Maduro, inclusive com o reconhecimento de Juan Guaidó como presidente da Venezuela.

Mas os documentos, agora, revelam que uma das preocupações brasileiras se referia à presença militar russa na região. Num relatório de Inteligência N° 0154/92130, de 2 de maio de 2019, a Abin destacava como a defesa da Venezuela por parte da Rússia possui “motivações econômicas e geopolíticas”.

“A posição russa integra estratégia para aumentar sua influência em área tradicionalmente prioritária na política externa dos EUA”, indicou. “A aliança com a Venezuela também representaria retaliação à interferência estadunidense em questões ocorridas na esfera de influência da Rússia, como na Crimeia”, constatou.

Segundo a Abin, a aproximação entre os dois países foi “liderada pelo setor de Defesa, cuja parceria ocorre no comércio de armas; na instalação de fábricas, de centros de treinamento e de manutenção de material bélico russo; e em exercícios militares conjuntos”.

A agência aponta como a cooperação militar abriu possibilidades de negócios também em outras esferas. A atuação russa na área econômica, além do setor de Defesa, ocorre principalmente nos campos energético e financeiro.

A avaliação da Abin foi, naquele momento, que as relações entre Rússia e Venezuela ganharam impulso com a tentativa venezuelana de se afastar da influência estadunidense. “A Rússia se mostrou um dos poucos países com desenvolvimento tecnológico de ponta na área militar disposto a resistir às pressões e ao embargo estadunidenses, embora o material vendido à Venezuela não seja o mais moderno do arsenal de guerra russo. Atualmente, há cooperação nas áreas militar, econômica e política”, destacou.

Vladimir Putin e Nicolás Maduro. Foto: AFP

Os dados levantados pela agência de espionagem brasileira concluíram que:

Entre 2000 e 2017, a Venezuela foi o país que mais importou armamentos russos na América Latina, concentrando cerca de 80% dos US$ 4,7 bilhões exportados para a região.

No mesmo período, a Rússia também se posicionou como o maior fornecedor de armamentos para o governo venezuelano, respondendo por cerca de 70% do total de US$ 5,5 bilhões gastos, seguida pela China, com 11%. Comparando os períodos de 2009-2013 e 2014-2018, no entanto,
verifica-se uma retração de 83% nas importações de armas por parte da Venezuela.

A empresa estatal russa Rosoboronexport, exportadora de armas e equipamentos militares, é a principal exportadora desses artigos para a Venezuela. Desde o acordo assinado em 2001, a Rússia forneceu armamentos e equipamentos como rifles de assalto Kalashnikov (AK-
103), caças Sukhoi, sistemas de mísseis antiaéreos Tor-M1 e helicópteros Mi.

Naquele ano de 2019, a Rosoboronexport estava finalizando a construção de fábrica de munições e fuzis Kalashnikov AK-103 na Venezuela. Embora o acordo para a construção da fábrica tenha sido assinado em 2006, sua construção foi interrompida em diversas ocasiões, tendo sido retomada em 2016.

No período de 2004 a 2016, estima-se entre US$ 11 e 14 bilhões o montante de capital investido pela Rússia na Venezuela na área militar.

Presença de militares russos

Outro aspecto mapeado pela Abin foi a presença de militares russos na região. De acordo com os documentos, em 29 de março de 2019, a Rosoboronexport anunciou a inauguração do Centro de Instrução e Treinamento Simulado Conjunto General de Brigada Oscar José Martínez Mora, nas instalações do Batalhão de Helicópteros General de Brigada Florencio Jiménez, na cidade de San Felipe, a 230 km de Caracas. “O centro tem por objetivo fornecer treinamento e aperfeiçoamento para pilotos e engenheiros de voo de aeronaves russas modelos MI-17V5, MI-35M e MI-267”, disse.

A realização de exercícios militares conjuntos ganhou força a partir de 2008, quando a Rússia anunciou o envio de navios de guerra para realização de exercícios militares conjuntos com a marinha venezuelana.

“O intercâmbio militar e os exercícios conjuntos entre as duas nações foram intensificados recentemente”, destacou. “Em 10 de dezembro de 2018, uma aeronave de transporte militar An-124, um avião comercial da Força Aeroespacial russa e dois bombardeiros estratégicos TU-160 pousaram no Aeroporto Internacional de Maiquetía, na Venezuela. Em 2008 e 2013, bombardeiros similares também estiveram presentes no país”, constatou.

Trecho do documento da Abin

Vigilância de Israel

A Abin ainda informou que, em 23 de março de 2019, dois aviões russos pousaram na Venezuela com cerca de 100 militares e aproximadamente 35 toneladas de equipamentos bélicos.

“Oficialmente, o governo russo declarou que a visita decorria da cooperação técnico-militar vigente desde 2001. O envio do contingente russo à Venezuela em março teria sido motivado por questões militares e técnicas. De acordo com imagens do sistema de vigilância satelital israelita iSi captadas em 07 de abril, na semana de 17 a 24 de mar. 2019 a Venezuela teria retirado o sistema antiaéreo russo S- 300 de armazém, na base Capitán Manuel Ríos, no estado de Guarico. As imagens identificaram lançador ereto, pronto para ser acionado, pertencente ao S-300”, disse.

Além do contingente encaminhado para a base Capitán Manuel Ríos, o governo russo está cooperando com a Venezuela na instalação de equipamentos de comunicação e radares de alerta para defesa antiaérea em Puerto Ordaz, no estado de Bolívar. Em 29 mar. 2019, 28 militares russos teriam se deslocado para o sul do país e se encontrado com a vice-presidente, Delcy Rodríguez, para tratar sobre a situação da hidrelétrica de Guri.

Ao menos 14 militares russos, do contingente de aproximadamente 100, encontram-se na cidade de Guayana/Venezuela. Os russos estariam trabalhando em cooperação com cubanos para a construção do projeto Escudo Guayanês. O projeto consiste na elaboração e construção de centro de resistência militar, que deverá ser dotado de equipamentos de comunicação satelital, para a hipótese de invasão estrangeira.

A Abin ainda apontou que também haveria especialistas em guerra cibernética, os quais estariam atuando no treinamento das contrapartes venezuelanas para a proteção das infraestruturas críticas do país.

“Ademais, existiriam civis e militares russos no Exército venezuelano que auxiliariam em treinamentos de espionagem e na segurança de altos funcionários do governo venezuelano e prestariam assessoria à Direção Geral de Contrainteligência Militar (DCIM) e ao Serviço Bolivariano de Inteligência Nacional  (Sebin)”, concluiu.

Tanque de fabricação russa usado pela Venezuela

Investimentos russos

Outro destaque da Abin foi o volume de apoio econômico recebido pela Venezuela. “Entre investimentos e empréstimos, estima-se que a Rússia teria dado suporte financeiro de aproximadamente US$ 17 bilhões à Venezuela”, apontou.

Segundo a agência, o governo russo intensificou investimentos no setor energético venezuelano, principalmente por meio da atuação da empresa estatal russa Rosneft.

O governo russo ainda possui 49,9% das ações da empresa Citgo, subsidiária da petrolifera estatal venezuelana Petróleos de Venezuela (PDVSA), situada nos Estados Unidos e alvo de sanções. Justamente por temer sanções econômicas impostas por países europeus, o governo venezuelano ainda planejava mudança da filial europeia da PDVSA de Portugal para Moscou.

Em 5 abr. 2019, os dois países estabeleceram parcerias comerciais para enfrentar as sanções econômicas da UE e dos EUA, bem como acordos na área energética. O país sul-americano também pediu auxílio na reposição de peças do seu sistema elétrico.

Desde então, o governo Maduro vem utilizando o Evrofinance Mosnarbank, instituição financeira russa, como alternativa para o manejo dos pagamentos a seus fornecedores.

“O banco é usado em transações que envolvem o financiamento de projetos petrolíferos e na compra de títulos da Venezuela e da PDVSA”, explicou a Abin.

Como foram obtidos os documentos

O acesso aos documentos da Abin ocorreu depois de seis anos de batalha por parte da Fiquem Sabendo e é considerado como um divisor de águas para a transparência no Brasil.

A ação segue tramitando para garantir que todos os documentos sejam entregues, sem tarjas e n íntegra, como é o caso ainda de vários informes.

Documentos classificados são informações públicas que, por motivos de segurança da sociedade ou do Estado, são temporariamente mantidas em sigilo. Os documentos obtidos já foram desclassificados e, portanto, estão fora do prazo de sigilo. De fato, entre 2014 e 2020, mais de 400 mil documentos federais perderam o sigilo.

Mas o acesso nem sempre está garantido. Assim, o projeto Sem Sigilo começou em 2019, quando a entidade convocou voluntários para pedir documentos cujo prazo de sigilo expirou. A iniciativa coletou milhares de páginas de dezenas de órgãos, mas enfrentaram resistência de entidades como Abin, GSI, Ministério da Defesa, Forças Armadas, Polícia Federal e Itamaraty.

Em 2020, eles ajuizaram uma ação contra a Abin. A ideia era enfrentar o órgão mais resistente à transparência pública porque apostavam que, se ganhassem, outros cairiam por gravidade.

Em 2021, o MPF acolheu parcialmente os argumentos e sugeriu que a Comissão Mista de Controle das Atividades de Inteligência (CCAI), do Congresso, analisasse os documentos. Corretamente, o Congresso se recusou, afirmando não ser sua competência.

Em 2023, a ação sofreu uma derrota em primeira instância. A Justiça aceitou o argumento da União de que a Abin poderia decidir sozinha o que divulgar ou não — mesmo contrariando o texto da LAI.

Mas, em maio de 2025, a 6ª Turma do Tribunal Regional Federal da 1ª Região (TRF-1) acatou o pedido e condenou, por unanimidade, a União e a Abin a entregar um conjunto de documentos mantidos ilegalmente sob sigilo.

A decisão tem um impacto profundo, já que:

Estabelece jurisprudência: é a primeira decisão em nível federal que reafirma que nenhum órgão está acima da LAI — e que seus prazos não são opcionais.

Cria precedente: o entendimento agora pode ser replicado para cobrar outros órgãos que seguem descumprindo a Lei, como o Itamaraty e as Forças Armadas.

Desmonta o sigilo eterno: reafirma que a transparência é a regra, e o sigilo, a exceção — com prazo.



Créditos

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