Apresentada a última obra de Viktor Erofeev, voz crítica da guerra desde a Crimeia. Reprimir o sentimento de culpa tornou-se um fenômeno automática. O colapso da União Soviética e a Igreja Ortodoxa, que nunca se desculpou por colaborar com o regime ateu. As profecias de Khruščev sobre as guerras russas na Geórgia e na Ucrânia e o fracasso da oposição no exterior.
Por Pe. Stefano Caprio*
O escritor russo Viktor Erofeev, uma das personalidades mais significativas da literatura russa pós-soviética – que vive em Berlim desde 2014, não aprovando as políticas agressivas do Kremlin desde a anexação da Crimeia – apresentou em Praga o seu último livro A Nova Barbárie: um Romance de ficção sobre a culpa da Rússia. Trata-se de uma reflexão sobre a atual consciência dos russos e sobre suas raízes históricas e psicológicas, mas também sobre aquela essência eterna do nacional que se torna hoje atual, marcando o ritmo de nossos dias, “do eternamente selvagem na alma russa, do selvajamente eternamente”.
Erofeev começa com uma história parabólica sobre a xícara de sua avó, símbolo do temperamento da Rússia: “Minha avó, Anastasia Nikandrovna, era uma beleza das bochechas rosadas, mas mesmo as beldades às vezes quebram xícaras.” A xícara azul escorregou de suas mãos, caiu no chão da cozinha e se estilhaçou, quebrando-se em mil pedaços, deixando apenas a alça quebrada em um canto, sua integridade inútil. A avó nunca disse: “Quebrei uma xícara”. Ela dizia exatamente assim: “A xícara quebrou. Como se uma xícara pudesse quebrar sozinha. Claro, ela poderia ter quebrado acidentalmente, e foi exatamente o que aconteceu. Imagino minha avó, desesperada, em um acesso de raiva (ela tinha um temperamento feroz), quebrando a xícara deliberadamente, mas não a imagino enquanto decide se desculpar: ‘Quebrei a xícara’.”
Essa xícara quebrada encarna o conceito russo de culpa e a recusa categórica em reconhecê-la, talvez porque a punição por um crime cometido na Rússia nunca é proporcional ao próprio crime, mas sempre maior, “como a massa que transborda de uma panela e se espalha”. Uma xícara em uma família pobre é um tesouro, e “a pobreza é o vício da Rússia; se eu destruir um tesouro de família, cometi um crime familiar e serei punido por isso, mas não posso comprar uma xícara nova. Não tenho condições. Transfiro a culpa, se não para outra pessoa, então para a própria xícara. Ela escorregou das minhas mãos e se estilhaçou.” A parábola indica que reprimir o sentimendo de culpa da consciência tornou-se im fenômeno automático para os russos: por causa de uma xícara quebrada, podem perder tudo. A acusação de quebrar uma xícara pode se estender a todas as outras áreas da vida. Não é de admirar que, na conversa cotidiana russa, os termos “sempre” e “nunca” sejam usados com frequência. Você nunca lava bem as mãos antes de comer, você nunca cumprimenta minha metade da família.
Ninguém assumiu a culpa pelo colapso da União Soviética, nem os líderes do partido, nem os militares, e Vladimir Putin repete frequentemente que foi “a maior tragédia dos nossos tempos”, embora não se saiba quem levou a economia socialista à bancarrota, quem quis lançar-se na corrida armamentista para ultrapassar o Ocidente nas “guerras estrelares”, quem invadiu o Afeganistão, gerando uma cadeia interminável de ressentimentos e vinganças, da qual se desenvolveram os movimentos islâmicos radicais, o ataque às Torres Gêmeas em Nova Iorque, as guerras do ISIS e muito mais.
A Igreja Ortodoxa recusou-se a pedir desculpas pela sua colaboração com o regime ateu, que a utilizou para acalmar as consciências dos poucos fiéis restantes e apoiar a propaganda ideológica em nível internacional. A partir do renascimento religioso espontâneo, a Igreja Ortodoxa apoderou-se das consciências dos novos fiéis, colocando-os novamente sob o controlo do Estado. Precisamente nestes dias o Patriarca Kirill vangloriou-se de que “nenhuma outra cidade no mundo vê tantas igrejas em construção como Moscou”, onde para rezar vai sempre menos gente, e somente para apoiar a guerra.
Segundo Erofeev, “descarregar sobre os outros as próprias culpas é um esporte nacional russo, porque os homens fortes não são levados a pedir desculpas: assumir a responsabilidade por uma xícara quebrada é coisa de tolo”.
O escritor pertence à geração “pós-modernista” da virada do século XX para o XXI, que descreve a realidade com imagens utópicas voltadas para o passado, mais que ao futuro de ficção científica. Já em 1982, havia formado um grupo literário chamado Eps, a partir das iniciais de seu sobrenome, juntamente com aquelas do conceitualista Dmitry Prigov e do “profeta do Putinismo” Vladimir Sorokin, autor em 2006 de “Dia do Opričnik“, no qual expôs satiricamente o rumo da política russa, transformando Putin no cruel líder dos opričniki, os guardas de Ivan, o Terrível, o cruel Malyuta Skuratov, em uma Rússia que se isola do resto do mundo, erguendo novos muros em direção ao Ocidente e redescobrindo sua natureza asiática. Hoje, os russos pedem que ele não escreva mais romances desse tipo, para que a realidade não ultrapasse em muito a fantasia.
O escritor se distingue do jornalista que quer “sair em direção ao público”, enquanto, em vez disso, prefere “trancar-se em um quarto onde possa criticar tudo e todos, porque lá dentro ele é livre”, uma condição que remete à atitude dos dissidentes soviéticos durante a era do samizdat, que está se tornando sempre mais atual.
O pai de Erofeev havia trabalhado como intérprete de Stalin e, por esse motivo, foi posteriormente enviado como diplomata a Paris, onde o pequeno Viktor cresceu com a convicção de que “a Europa é minha casa, é meu quarto livre”, sem renunciar à sua identidade russa. Dessa convicção, ele extrai os fundamentos de sua natureza como escritor, que não é a de “alguém que quer escrever, mas que quer experimentar todas as emoções… escritor se nasce, não se torna”. Em 1975, graduou-se com uma tese que causou grande alvoroço na URSS, sobre o tema “Dostoiévski e o Existencialismo Francês”, e seu primeiro ensaio, aos 22 anos, foi sobre “O Marquês de Sade, o Sadismo e o Século XX”, publicado na revista “Questioni di letteratura” após longas discussões e revisões, e aceito depois da inclusão de uma citação de Engels sobre o sadismo.
Recordando os períodos passados, por ele vividos entre a Europa e a URSS, Erofeev afirma que nos tempos de Brežnev havia muito mais liberdade que na Rússia de Putin, porque “sob Brežnev, não se buscava mais construir o comunismo, mas era o comunismo que construía casas de luxo para altos funcionários”. Hoje, ao invés disso, “caímos na escuridão da noite; não há mais nem mesmo analogias com o passado, talvez somente com os últimos anos de Stalin”.
Antes de Varvarstvo, seu livro sobre a barbárie russa, ele havia escrito Velikij Gopni, aplicando a definição soviética de gopnik,, “valentão de rua”, ao presidente Vladimir Putin, como um símbolo da “estupidez cada vez mais disseminada de nossa época, que dá origem à barbárie em que vivemos”. Os gopniki usam linguagem vulgar e descarada, como Putin, que recentemente acusou os europeus de serem “porquinhos na corte de Biden” e que a Rússia jamais poderia se tornar parte da civilização ocidental. “Não existe nenhuma civilização, mas somente degradação fétida”, como repetiu de várias maneiras na “linha direta” de 19 de dezembro com os cidadãos, respondendo também a perguntas de crianças.
Por outro lado, a barbárie é um fenômeno recorrente ao longo da história, desde os tempos da Grécia Antiga e a dissolução do Império Romano, e hoje se repete em modalidades “absolutas e universais” ao final de uma civilização ultraliberal formada após as guerras mundiais. Nisto o escritor identifica a “culpa russa”, tendo inaugurado a era da barbárie à qual hoje todos os outros povos estão se adaptando. No romance, a culpa russa é personificada em uma jovem de 32 anos (o período pós-soviético), esposa do narrador, que “expressa amor e ódio sem razões lógicas”, uma figura que exemplifica o pesadelo que os russos vivem hoje.
Recorda-se quando o ditador georgiano Josef Stalin morreu em 1953 e seu sucessor, o ucraniano Nikita Khruščev, dirige-se à população com o apelo: “Procuremos pelo menos não nos matar uns aos outros”, profetizando as recentes guerras russas na Geórgia e na Ucrânia. Naquela época, a sucessão de líderes do partido tentou expressar algum senso de humanidade, de Brežnev e Andropov e Černenko até Gorbačëv, enquanto hoje, “o tempo trabalha contra nós, a esperança é que o que estamos vivendo termine o mais rápido possível”. Diz-se, aliás, que “a esperança é a última a morrer”, enquanto, segundo Erofeev, na Rússia, “a esperança morre por primeiro”. Também a oposição no exterior, que anda brigando e trocando insultos atualmente, não representa mais uma verdadeira intelligentsija; no máximo, é “uma classe média bem-educada”, mas, por outro lado, “não é como se na França ou em outros lugares se visse uma genuína classe de intelectuais que possa salvar o mundo”.
Yerofeev está, no entanto, convencido de que “a Rússia ainda não está morta, porque a Rússia é tão complexa que não pode morrer completamente”. Ninguém pode dizer que tipo de Rússia haverá depois da guerra, supondo que a guerra termine de alguma forma ou pelo menos cesse, o que Putin absolutamente não quer, mas, como aconteceu no fim da URSS, “ninguém assumirá a culpa pelos desastres ocorridos; seremos todos uma página em branco na qual escrever um novo romance”.
*Pe. Stefano Caprio é docente de Ciências Eclesiásticas no Pontifício Instituto Oriental, com especialização em Estudos Russos. Entre outros, é autor do livro “Lo Czar di vetro. La Russia di Putin”. (Artigo publicado pela Agência AsiaNews)
