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A Terra como sujeito político: o grito de resistência que vem das mulheres indígenas

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Uma das principais vozes na articulação das Mulheres Indígenas pelo Bem Viver na Argentina, Moira Millán se destaca como ativista, escritora e se define como “weichafe” (guerreira) do povo Mapuche. Com uma trajetória marcada pela luta incansável em defesa dos territórios ancestrais, contra o avanço de megaprojetos extrativistas e pela denúncia do que ela classifica como “terricídio”, um conceito que engloba a destruição sistemática de todas as formas de vida e dos ecossistemas. 

Nascida em uma família Mapuche que enfrentou o deslocamento forçado para a periferia urbana, ela percorreu um caminho de retorno às suas raízes e à ocupação de terras para retomar o modo de vida de seu povo, tornando-se uma figura central no movimento que une a espiritualidade indígena à resistência política. 

Hoje ao lado dos três milhões de mapuches, que vivem entre o Chile e a Argentina, Moira resiste ao governo do ultradireitista Javier Milei que tem mantido uma postura de confronto e estigmatização em relação ao povo Mapuche, classificando-os de terroristas. A origem da perseguição aos indígenas se dá devido a reivindicação histórica dos Mapuches pelo direito de viver em suas terras ancestrais, que foram tomadas pelo Estado no século XIX e agora são alvo de interesses econômicos e ambientais.

No livro Terricídio: Sabedoria ancestral para um mundo alternativo, Moira Millán argumenta que a destruição ambiental não é um evento isolado, mas um projeto sistemático que assassina não apenas o ecossistema físico, mas também as subjetividades, as línguas e as formas de espiritualidade que mantêm o equilíbrio da vida. “O terricídio compreende todas as formas pelas quais o sistema agride a vida e todas as formas de vida”, diz a ativista em entrevista ao Brasil de Fato.

Ao analisar o capitalismo de uma perspectiva indígena e feminina, Millán denuncia como o sistema de estados-nação atua em conluio com interesses corporativos para despojar os povos de seus territórios, resultando em uma ameaça existencial que ultrapassa as fronteiras das comunidades originárias e atinge toda a humanidade.

Ao Bem Viver, programa do Brasil de Fato, ela conta que a obra propõe a recuperação das sabedorias ancestrais como a única via possível para a construção de um futuro que não seja pautado pela lógica da exploração e do lucro. Através da narrativa e do pensamento político das Mulheres Indígenas pelo Bem Viver, a autora apresenta alternativas concretas baseadas na reciprocidade com a natureza e na reconstrução do tecido comunitário. 

Millán descreve como as mulheres indígenas são as guardiãs de um conhecimento que pode ajudar a humanidade a repensar sua existência no planeta, confrontando o sistema patriarcal e colonial que sustenta a exploração ambiental. 

Confira entrevista completa:

Brasil de Fato – No seu livro Terricídio: Sabedoria Ancestral para um Mundo Alternativo, lançado recentemente, o termo terricídio é central. Poderia nos explicar a diferença fundamental entre ecocídio e terricídio? 

Moira Millán – O terricídio é um conceito que pensamos de forma coletiva, entre mulheres indígenas de diferentes povos. Isso é muito importante, pois percebemos que conceitos como ecocídio eram muito pequenos, insuficientes para descrever a realidade de morte nos nossos territórios. 

O terricídio compreende todas as formas pelas quais o sistema agride a vida e todas as formas de vida. Portanto, quando se fala de feminicídio, está-se falando de terricídio. Quando se fala de epistemicídio, que é toda a estrutura de culturas e línguas que estão morrendo, é terricídio. 

Quando se fala da perseguição à espiritualidade dos povos indígenas, da perseguição a autoridades espirituais e políticas indígenas, está-se falando de terricídio. Quando se fala de ecocídio, genocídio, tudo isso é terricídio. O ponto principal do conceito de terricídio é entender que todas as vidas se conectam e que todas são muito, muito importantes. Nenhuma vida é desprezível ou descartável.

O conceito de “Bem Viver”, é apresentado como um caminho alternativo. Quais são os pilares éticos e práticos do “Bem Viver” que podem reorientar a sociedade moderna para uma relação de reciprocidade com a natureza? 

Nós temos uma definição para o Bem Viver, que é restabelecer a harmonia, o respeito e a solidariedade entre os povos e para com toda a natureza.

Portanto, não se pode falar em Bem Viver se houver pessoas que continuam envolvidas em um processo de destruição da vida. Pode-se pensar em melhorias laborais, em melhores salários para os trabalhadores, mas se essas melhorias salariais dependerem da destruição da floresta, dependerem da destruição da terra, então não estaríamos diante do Bem Viver.

O Bem Viver propõe uma nova matriz civilizatória, é um paradigma civilizatório diferente, onde se restabelece a harmonia como princípio fundamental o reconhecimento de toda a vida. No entanto, o Bem Viver é possível, e sem descartar a tecnologia, mas sim construindo um modelo tecnológico que seja respeitoso com a natureza e com a cultura dos povos.

A alimentação entra nisso?

Antigamente, o povo Mapuche se alimentava para ter coragem. Hoje em dia, a gente apenas come, mas não há alimento de verdade. É o que dizem os sábios da minha cultura.

Quando o povo Mapuche atravessou o genocídio (assim como nossos irmãos palestinos hoje) passamos por um genocídio que durou de 1878 ou 1875 até 1940. Por causa disso, havia problemas psicológicos, emocionais, muito medo e pânico.

Naquela época, as machis (nossas curandeiras), para curar o trauma, davam de comer carne de predadores, como o Puma (onça-parda), por exemplo. Elas dizem que temos que voltar a nos alimentar de maneira saudável para voltar a ter coragem, porque a indústria da carne cria animais acovardados, animais sob muita pressão e muito maltrato. Nós comemos essa carne e também nos tornamos maltratados e com muito medo. Somos sociedades do medo.

Portanto, a alimentação é parte dessa transformação de paradigma. Não é suficiente que seja comida orgânica, ela também tem que ser produzida com justiça.

Como weychafe (guerreira) e líder de opinião, qual é o papel específico da mulher Mapuche na linha de frente da defesa do território e contra o terricídio? De que forma o patriarcado e o extrativismo são faces da mesma violência, tanto contra as mulheres quanto contra a Terra?

O patriarcado é uma expressão colonial. Na maioria dos povos indígenas do mundo, não existia uma visão de opressão contra as mulheres. Isso é algo que chegou com o conquistador. O Povo Mapuche não determina o papel ou a função de cada uma das pessoas pelo seu gênero. 

Então, se você nasce com a condição de curar outros, você é “machi”. Se você nasce com a condição de entender o coração das plantas, você é a wenwutefe (curandeira), seja homem, seja mulher, isso não tem importância. Se você nasce com a condição política de acompanhar sua comunidade em uma luta política, não importa o seu gênero, você pode ser lonko (chefe) ou weychafe (guerreiro).

Então, em nosso Povo Mapuche, havia equidade de gênero, porque havia harmonia, porque o que estruturava a relação político-social do nosso povo era sustentar a harmonia.

Lutar sem ser antipatriarcal, sem ser anticolonialista é uma contradição. Lutar contra o patriarcado sem ser antirracista é uma contradição. Nós temos que destruir o sistema em todas as suas formas, não apenas agora, não somente lutar para obter privilégios enquanto outros setores sofrem.

Então, creio que os povos indígenas e as mulheres, sobretudo neste tempo, estão fazendo ou estão levando adiante uma luta muito importante na destruição deste sistema. E estão propondo, inclusive, uma agenda do feminismo, a luta antipatriarcal, a luta anticolonial. E não pode haver uma vitória nessa luta se o sistema inteiro não for desintegrado.

O povo Mapuche é composto por aproximadamente três milhões de pessoas entre Chile e Argentina. Qual é a situação do povo Mapuche nos dias de hoje?

É uma situação muito dura, muito difícil. Todo o Wallmapu (território Mapuche) está sob assédio do fascismo e, sobretudo, do sionismo internacional. Eu moro na Patagônia, no Sul, na província de Chubut.

Lá, a Mekorot, que é uma empresa de água israelense, chegou à Patagônia para fazer a privatização das águas. O presidente Milei é uma pessoa muito ruim. É uma pessoa maluca que está fazendo de tudo para destruir a vida dos territórios e dos povos, militarizando, trazendo armas de Israel. Praticamente, ele está presenteando o Estado de Israel com a Patagônia.

Recentemente, ele aprovou uma lei para explorar a mineração nas áreas periglaciais. Eu gostaria que as pessoas que estão vendo esta entrevista entendessem a importância da Patagônia, a importância das geleiras: somos um reservatório de água doce para o mundo. A Patagônia e a Amazônia tem que ser irmãs. Elas estão neste momento sob alerta, com muitas ameaças, correndo perigo.

E eu convido meus irmãos do Brasil, que apoiem a luta do Povo Mapuche, porque é uma luta pela vida da Patagônia. A Patagônia não deve ser responsabilidade apenas do Povo Mapuche, é de toda a humanidade. Milei é, neste momento, um pesadelo. Precisamos do apoio do mundo para acabar com o seu governo, que é um governo de morte.

Estamos com presos políticos, com famílias inteiras na clandestinidade. Há mortos e desaparecidos. É uma situação muito difícil. Na Argentina, há uma blindagem midiática para que os argentinos não saibam o que estamos vivendo.

Se você me visitar nos 200 quilômetros que separam a minha comunidade das cidades mais importantes da Patagônia, você tem que passar por muitos postos. Militares e todas as forças de Segurança do Estado Federal e provinciais se juntaram e formaram uma força conjunta chamada Comando Unificado. Eles têm sinal verde para invadir, prender e até mesmo matar. Estão pondo suas armas em nossa cabeça e o mundo não sabe disso, pode terminar em um massacre.

Em um mundo dominado pela crise climática e pela violência sistêmica, o que a cosmovisão Mapuche oferece como esperança, e qual é o primeiro passo prático que um leitor, após terminar o livro, pode dar para se alinhar à defesa da vida e do território?

Eu penso que a esperança reside no fato de que a luta não está depositada apenas nas pessoas, na humanidade. Não temos um pensamento antropocêntrico, não acreditamos que o sujeito social e político emergente seja apenas as pessoas ou a classe trabalhadora.

Hoje, o sujeito social e político é a Terra. É em torno dela que estamos nos unindo e toda esta Terra também está conspirando conosco para lutar contra este sistema de morte, este sistema capitalista, onde os maus detêm o poder hoje.

Portanto, é preciso olhar para a Terra, é preciso ouvir a Terra. É ela quem nos dá sabedoria, e creio que isso me enche de esperança: saber que não dependemos de líder nenhum, que não dependemos de Messias nenhum. Dependemos da Terra, que é muito mais sábia do que nós.

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Na TV Floripa: sábado às 13h30, reprises ao longo da programação, no canal 12 da NET.

Na TVU Recife: sábados às 12h30, com reprise terça-feira às 21h, no canal 40 UHF digital.

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