Esta é a primeira parte do especial “O Estado que vendeu mulheres: a história das sul-coreanas traficadas” de Opera Mundi, composto de três reportagens.
“Meu amigo me vendeu e desapareceu”, contou, angustiada, Kim Kyung Sook. Em 1965, a sul-coreana tinha apenas 15 anos de idade quando caiu em uma emboscada e se tornou refém de um esquema de tráfico sexual institucionalizado pelo próprio Estado para servir os soldados norte-americanos.
“Ele me prometeu um emprego em uma fábrica, então o acompanhei. Só que [ao chegar no local], ele desapareceu. Quando falei ao proprietário que queria voltar para a minha casa, disse que eu estava endividada porque meu amigo havia levado todo o dinheiro. Então, para poder ir embora, teria que pagar. Mas como é que eu ia ter dinheiro naquela época? Mais tarde, descobri que estava na casa de um cafetão em Bosan-ri, Dongducheon”, contou a vítima de 75 anos, ouvida com exclusividade por Opera Mundi.
Todas as noites, Kim era dopada e perdia a consciência. E, em caso de recusa, espancada.
“Tomava aquele remédio, e não lembrava de mais nada do que acontecia logo depois. Sempre, na manhã seguinte, acordava com uma dor insuportável”, disse. “[Certo dia] outras mulheres da casa me contaram que soldados entraram no meu quarto várias vezes ao longo da noite. Fico enjoada toda vez que penso nisso. Até hoje, odeio Dongducheon”.
Uma vez, tentou fugir pela janela. Porém, ao ser descoberta pelos vigias, foi brutalmente agredida. “Vivia apavorada no bordel. Todas as noites ficava com medo só de pensar no que poderiam fazer comigo […] Olhar para as pessoas me deixava ansiosa. Sempre que via os soldados à noite, me perguntava o que eles fariam comigo”.
O padrão da violência
Sua história se repete em dezenas de milhares de outras mulheres sul-coreanas enganadas e sequestradas, principalmente entre as décadas de 1950 e 1980, no auge do regime ditatorial. É o caso de Lee Young Sook, de 71 anos, que foi levada para um bordel aos 16 anos após fugir de casa.
Enquanto andava sem rumo pelas ruas de Seul, Lee deparou-se na frente de uma estação de trens com um desconhecido que lhe ofereceu um trabalho doméstico. Não pensou duas vezes. Aceitou a proposta acreditando que qualquer alternativa longe dos abusos familiares fosse ser a melhor escolha.
“Na época, as pessoas não tinham televisão em casa. Tinham, no máximo, uma rádio pequena. Então, não sabia nada sobre o mundo afora”, relatou Lee a Opera Mundi. “Segui aquele homem. Ele me levou para um lugar bem pequeno. Chegando descobri que era a casa de um cafetão em Paju, na província de Gyeonggi”.
Naquela mesma noite, Lee viu, pela primeira vez, um norte-americano. Ele era “grande”, contou.
“Fui atacada por ele. Os militares deviam saber que eu era menor de idade. Aquele homem voltou no dia seguinte, e no outro, e no outro novamente, continuava voltando. Disse que, se eu aceitasse, ele se casaria comigo. Me trouxe até produtos dos Estados Unidos… Tentava me seduzir… Mas tudo o que eu podia sentir naquele momento era medo. Me pergunto como ele queria se casar comigo sabendo que eu era menor? E ninguém me protegeu”, desabafou.
Exploração como política pública
Em setembro deste ano, 117 sobreviventes de um esquema de tráfico sexual promovido pela Coreia do Sul entraram com um processo inédito na Justiça, visando responsabilizar não apenas o governo local como também o governo dos Estados Unidos pelas atrocidades. Em 2022, uma decisão da Suprema Corte já havia reconhecido a culpa sul-coreana. Entretanto, desta vez, Washington se viu no centro da acusação, por fomentar o tráfico, autorizando abusos e, inclusive, o sistema da aplicação forçada das chamadas “injeções de leite”.
Um dos trechos da ação judicial de 2025 à qual Opera Mundi teve acesso detalha como funcionava o esquema: os cafetões financiavam “sequestradores ou agências de emprego” para que estes pudessem ofertar falsas oportunidades de trabalho às mulheres – na maioria das vezes, funções como empregada doméstica.
O pagamento feito antecipadamente aos olheiros passava a ser revertido em dívidas para as cidadãs levadas às “aldeias de base” – agrupamentos de bares e bordéis próximos aos quartéis que eram administrados pelo governo para gerir a exploração sexual.
As aldeias de base se concentravam principalmente na região de Dongducheon, na província de Gyeonggi, cidade militar ao norte de Seul, próxima à fronteira com a Coreia do Norte.
A dívida fraudulenta era o mecanismo que as mantinha em cárcere privado. Para quitá-la, a única alternativa era a prostituição.
O governo sul-coreano, que chamava essas mulheres de “diplomatas civis” e “patriotas”, via o esquema como uma forma de angariar dólares e fortalecer a aliança com os Estados Unidos no contexto pós-Guerra da Coreia.
Os dólares arrecadados no tráfico chegaram a equivaler a um décimo do total de importações de moeda estrangeira da Coreia do Sul. O negócio ganhou até um ditado: “em Dongducheon, até os cães carregam dólares”. Nasceu também o termo “Donducheon” (“don” significa dinheiro na tradução em português).
“Éramos apenas uma fábrica de dólares para o governo [sul-coreano] e os soldados norte-americanos não se importavam com o nosso país. Éramos pobres e não tínhamos nem o que comer. [Os Estados Unidos] olhavam para o nosso povo com total desprezo”, criticou Lee.
Nos bares, as vítimas eram obrigadas a servir os soldados como acompanhantes, dançar ou “prestar quaisquer serviços solicitados”. Já dentro dos bordéis, eram mantidas em cárcere privado sob constante vigia, sendo submetidas ao uso de drogas para impedir quaisquer chances de fuga.
As “injeções de leite”
A reportagem questionou o perfil das mulheres “recrutadas” para o tráfico. De acordo com as entrevistadas, eram todas jovens porque os soldados norte-americanos “gostavam mais quando traziam garotas novas”, uma vez que “achavam que podiam fazer o que quisessem com elas”. As menores de idade eram “frutos de maior prazer sexual”, conforme descrito na ação judicial.
Constrangidas com a situação, as mulheres que ficavam retidas nos bordéis costumavam esconder suas identidades.
“Nunca revelávamos a nossa idade verdadeira porque isso feria o nosso orgulho, então todas nós insistíamos que tínhamos 21 anos”, afirmou Lee. “Mas a gente sabia. Só de olharmos umas às outras, sabíamos mais ou menos a idade de cada uma”.
O ponto mais brutal do esquema de controle era o ritual médico. Duas vezes por semana, as mulheres eram submetidas a exames para Infecções Sexualmente Transmissíveis (IST).
Aquelas que não passavam, ou eram acusadas de estarem infectadas por qualquer militar, mesmo sem prova, eram encaminhadas a um “Centro de Controle de IST”, descrito na ação como um “campo de concentração”.
Durante a quarentena, eram forçadas a tomar a “injeção de leite” – uma dose alta de penicilina aplicada sem supervisão médica.
“Chamávamos a penicilina de ‘injeção de leite’. Toda vez que eu tomava aquela injeção branca, sentia uma dor insuportável”, descreveu Lee Young Sook.
Kim Kyung Sook testemunhou a letalidade do procedimento. “A injeção de penicilina era mais ou menos do tamanho de um dedo indicador. Alguém que tomou a injeção bem na minha frente morreu”.
As entrevistadas equiparam o centro a uma “prisão”, ao detalhar que nos quartos havia camas finas enfileiradas dos dois lados “exatamente como as encontradas em bases militares norte-americanas”.
Feito o tratamento compulsório e, logo, com os testes negativados, as vítimas passavam a portar certificados com o resultado dos exames para “ajudar” os soldados a identificarem os “corpos limpos”.
Elas tinham que usar crachás com seus respectivos nomes e idades – muitas vezes, as vítimas preferiam registrar dados falsos. “Por que eu precisaria revelar a minha identidade para eles? Eu só preciso de um passe com um nome qualquer”, disse Lee.
O prédio de Dongducheon
O esquema ilegal de tráfico sexual perdurou até 2004, quando a Coreia do Sul finalmente implementou a “Lei sobre a Punição de Atos de Agenciamento da Prostituição”.
Atualmente, o prédio localizado na entrada de Soyosan, em Dongducheon, é o último remanescente que testemunha a história obscura da Coreia do Sul.
“Ficar trancada naquela ‘casa branca’, ficar tomando penicilina era como viver em uma prisão”, disse Lee.
Por sua vez, apesar do trauma, Kim sustentou a necessidade da preservação.
“Se me dessem 100 milhões de won, eu destinaria 50 milhões para a preservação [do prédio] e 50 milhões para as mulheres sobreviventes”.
O novo processo judicial prevê romper o silêncio histórico e a tentativa de omissão que, segundo as vítimas, se estende aos Estados Unidos. “Espero que ambos os países reconheçam o que fizeram conosco e emitam um pedido formal de desculpas. Apenas assim poderemos morrer em paz”, diz Lee.
* Os nomes utilizados na reportagem são fictícios conforme solicitação das entrevistadas.
** Nas entrevistas originais, as vítimas referem-se umas às outras de “onni” (“irmã”, na tradução em português). Na Coreia do Sul, o termo não é usado apenas no sentido biológico. A mulher pode chamar uma segunda mais velha de “onni” desde que haja um certo nível de confiança ou proximidade. Ou seja, a designação usada pelas entrevistadas revelam uma união presente entre as vítimas.
