Por Jamil Chade
Enquanto percorria o mundo mentindo sobre a situação na Amazônia, o ex-presidente Jair Bolsonaro era informado por sua agência de inteligência que o desmatamento na floresta tropical avançava de forma “significativa”, ameaçava a imagem internacional do Brasil e poderia prejudicar interesses econômicos do país.
A informação faz parte de documentos da agência e que foram obtidos após uma longa batalha judicial pela Fiquem Sabendo, organização sem fins lucrativos especializada em transparência pública. Ao longo dos próximos dias, o ICL Notícias trará com exclusividade dezenas de informes, relatórios e dados até hoje mantidos como confidenciais pela Abin.
No púlpito da ONU, em setembro de 2019, Bolsonaro saiu ao ataque da comunidade internacional, denunciando o que ele chamou de uma campanha contra o país. “Meu governo tem um compromisso solene com a preservação do meio ambiente e do desenvolvimento sustentável em benefício do Brasil e do mundo”, disse.
“Nossa Amazônia é maior que toda a Europa Ocidental e permanece praticamente intocada”, insistiu. “Prova de que somos um dos países que mais protegem o meio ambiente”, disse.
Um ano depois, na mesma Assembleia Geral da ONU, ele afirmou que seu governo era “líder em conservação de florestas tropicais”. Bolsonaro ainda garantiu: “Nossa floresta é úmida e não permite a propagação do fogo em seu interior”.
Mas os discursos não passavam de uma manobra deliberada para tentar enganar a opinião pública mundial. Em abril de 2020, um informe da Abin enviado à presidência mostrava uma realidade radicalmente diferente.
“O desmatamento na Amazônia aumentou significativamente entre agosto de 2019 e abril de 2020 e atingiu uma área 50% maior que o verificado no mesmo período entre os anos de 2018 e 2019”, afirmou o relatório que foi entregue ao Palácio do Planalto naquele mês.
Os dados ainda apontavam que, em 2020, 33% da derrubada de floresta foi realizada em terras públicas, que são, principalmente, alvo de grilagem.
Nem o argumento da “umidade” da floresta usado por Bolsonaro na ONU era sustentado pela Abin. “Em 2020, os órgãos de fiscalização ambiental receiam que haja aumento do volume de queimadas no período de seca. Segundo o Ipam [Instituto de Pesquisa Ambiental da Amazônia], em razão da diminuição da umidade, o fogo seria maior em florestas próximas às áreas já desmatadas e recém exploradas. Este fato pode ocorrer mesmo vários metros adentro da mata, aumentando a possibilidade de uma queimada gerar incêndios florestais”, constatou.
O agro é pop?
O relatório ainda desmentia a narrativa de Bolsonaro de que a agricultura nacional não era a culpada pelo desmatamento.
“Nosso agronegócio continua pujante e, acima de tudo, possuindo e respeitando a melhor legislação ambiental do planeta”, disse o ex-presidente na ONU em setembro de 2020. “Mesmo assim, somos vítimas de uma das mais brutais campanhas de desinformação sobre a Amazônia e o Pantanal”, justificou.
Mas o informe da Abin, entregue cinco meses antes, apontava para outra realidade. “No Amazonas, a principal área de extração ilegal de madeira está localizada no sul do estado, coincidindo com a área de expansão da fronteira agrícola”, disse. “O desflorestamento no estado está predominantemente associado à implantação de pastos para rebanhos bovinos”, alertou.
“No Pará, o fenômeno do desmatamento desdobra-se em duas vertentes principais, a do desmatamento estruturado, realizado por grandes fazendeiros que fraudam os processos de concessão de exploração por meio de mecanismos de corrupção presentes nas secretarias ambientais estaduais e a do desmatamento artesanal, realizado em regiões remotas do estado”, disse o informe da Abin.
A agência ainda apontava que o desflorestamento no estado do Amazonas estava “predominantemente associado à implantação de pastos para rebanhos bovinos”. “Encerrado o ciclo da extração de madeira, agentes especializados atuam na preparação do terreno para a atividade pecuária. A área desmatada é queimada e transformada em pasto”, afirmou. “O terreno é cercado e, em alguns casos, esses mesmos agentes são responsáveis pelo transporte do rebanho para a região. O fazendeiro paga pelo serviço e trata da produção”, disse.
O informe ainda aponta para o Pará como um dos estados com maior área agregada a receber avisos de desmatamento em março de 2020. Mais uma vez, o foco era o agronegócio.
“A devastação na região está associada, principalmente, à expansão da agropecuária e da atividade de grilagem”, disse. “Essas atividades estão correlacionadas a crimes como corrupção e emissões falsificadas de licenças e interferem em distintos aspectos socioeconômicos do estado, como proteção ambiental e ocupação imobiliária”, alertou.

Impacto internacional
No informe da Abin, os agentes apontaram ainda para o risco que o desmatamento poderia gerar para a reputação internacional do Brasil e a violação de acordos assinados pelo país.
“A imprensa internacional e nacional já tem divulgado notícias sobre o aumento do desmatamento na Floresta Amazônica em 2020. Esse aumento recente, somado a uma perspectiva de maiores incêndios e queimadas na região durante na época de seca, tende a prejudicar a imagem do pais no exterior, gerando impactos no setor econômico”, alertou a Abin.
“O Brasil é signatário do Acordo de Paris, no qual se compromete a implementar medidas efetivas para atingir metas climáticas, como a diminuição do desmatamento. Além disso, o tratado comercial entre Mercosul e União Europeia reitera expressamente essas obrigações e países europeus ameaçam não ratificar o acordo em caso de descumprimento dessas metas”, advertiu.
“O recente aumento da área desmatada tende a prejudicar a imagem do País, gerando impactos negativos nas negociações internacionais e multilaterais”, completou a agência.
Bolsonaro, porém, preferiu acusar a comunidade internacional de estar divulgando mentiras sobre o país. Cinco meses depois, na ONU, ele insistiu que o Brasil despontava “como o maior produtor mundial de alimentos. E, por isso, há tanto interesse em propagar desinformações sobre o nosso meio ambiente”.
“Rechaçamos as tentativas de instrumentalizar a questão ambiental ou a política indigenista, em prol de interesses políticos e econômicos externos, em especial os disfarçados de boas intenções”, disse.
Um ano antes, em setembro de 2019, ele chamou as críticas ao Brasil por desmatamento como “ataques sensacionalistas por grande parte da mídia internacional”.
Os documentos, porém, revelam que ele sabia tanto do desmatamento como do impacto que isso geraria ao país.

Como foram obtidos os documentos
O acesso aos documentos da Abin ocorreu depois de seis anos de batalha por parte da Fiquem Sabendo e é considerado como um divisor de águas para a transparência no Brasil.
A ação segue tramitando para garantir que todos os documentos sejam entregues, sem tarjas e n íntegra, como é o caso ainda de vários informes.
Documentos classificados são informações públicas que, por motivos de segurança da sociedade ou do Estado, são temporariamente mantidas em sigilo. Os documentos obtidos já foram desclassificados e, portanto, estão fora do prazo de sigilo. De fato, entre 2014 e 2020, mais de 400 mil documentos federais perderam o sigilo.
Mas o acesso nem sempre está garantido. Assim, o projeto Sem Sigilo começou em 2019, quando a entidade convocou voluntários para pedir documentos cujo prazo de sigilo expirou. A iniciativa coletou milhares de páginas de dezenas de órgãos, mas enfrentaram resistência de entidades como Abin, GSI, Ministério da Defesa, Forças Armadas, Polícia Federal e Itamaraty.
Em 2020, eles ajuizaram uma ação contra a Abin. A ideia era enfrentar o órgão mais resistente à transparência pública porque apostavam que, se ganhassem, outros cairiam por gravidade.
Em 2021, o MPF acolheu parcialmente os argumentos e sugeriu que a Comissão Mista de Controle das Atividades de Inteligência (CCAI), do Congresso, analisasse os documentos. Corretamente, o Congresso se recusou, afirmando não ser sua competência.
Em 2023, a ação sofreu uma derrota em primeira instância. A Justiça aceitou o argumento da União de que a Abin poderia decidir sozinha o que divulgar ou não — mesmo contrariando o texto da LAI.
Mas, em maio de 2025, a 6ª Turma do Tribunal Regional Federal da 1ª Região (TRF-1) acatou o pedido e condenou, por unanimidade, a União e a Abin a entregar um conjunto de documentos mantidos ilegalmente sob sigilo.
A decisão tem um impacto profundo, já que:
Estabelece jurisprudência: é a primeira decisão em nível federal que reafirma que nenhum órgão está acima da LAI — e que seus prazos não são opcionais.
Cria precedente: o entendimento agora pode ser replicado para cobrar outros órgãos que seguem descumprindo a Lei, como o Itamaraty e as Forças Armadas.
Desmonta o sigilo eterno: reafirma que a transparência é a regra, e o sigilo, a exceção — com prazo.
