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Prefeitura de SC usa texto sobre animais em contratos de clínicas usadas por população de rua

by admin

Pelo menos quatro dos cinco contratos assinados em 2025 pela Prefeitura de Chapecó com clínicas de internação psiquiátrica possuem problemas graves na redação, que indicam procedimentos de colagem de outros documentos oficiais.

Em três destes documentos há evidências de que o material que baseou os contratos foi adaptado de compras relacionadas à medicina veterinária. Em um outro, termos parecem se referir a um processo seletivo, não à internação clínica.

O valor e o objeto dos contratos foi tema de uma reportagem publicada na última sexta-feira, que reuniu documentos recentes assinados pelas prefeituras de Chapecó, Balneário Camboriú e Florianópolis com entidades privadas, de fora do Sistema Único de Saúde, para receber internos retirados das ruas. Essas prefeituras adotaram a política de internação compulsória como parte das políticas de controle da população vulnerável.

No caso de Chapecó, apenas uma das clínicas com contrato assinado em 2025 não apresenta incoerência nos termos contratuais.

Os contratos com as clínicas Mosaico, Moni Pfeifer e Fabrício do Prado possuem o mesmo erro: expressam que o termo pode ser extinto “por realizar a cobrança dos serviços prestados contratados pelo MUNICÍPIO, também dos tutores dos animais ou seu representante”. O documento parece ter sido adaptado do credenciamento de clínicas para o Núcleo de Atenção aos Pequenos Animais, focada em controle populacional de cães e gatos.

Depois, reiteram que isso também pode ocorrer “quando comprovado que o óbito do animal foi em decorrência de negligência, imprudência ou imperícia, o contrato será extinto”. Estas três clínicas têm contratos a partir do processo de credenciamento 013/2025, para a contratação de residencial terapêutico tipos I e II.

Já o contrato com a Angels, que mantém uma internação, teve seu problema identificado pela vereadora de Passo Fundo, Marina Bernardes. Também no termo sobre a sua extinção fala-se em serviços prestados “ao aluno”. No trecho sobre “vedações” também se lê que é “vedada a participação na banca examinadora de cônjuges, companheiros ou parentes consanguíneos ou afins”.

“Esse é um ponto de preocupação, porque como o contrato é vago e parece ter sido redigido sem segurança administrativa e jurídica, a fiscalização fica comprometida”, pontua Marina, que identificou o problema assim que leu o contrato. “Além de não sabermos quais tratamentos estão previstos, corremos o risco de que medidas similares sejam adotadas por outras cidades que querem higienizar suas ruas, transferindo para outros locais este problema social que precisa ser enfrentado sob outras frentes de trabalho”, analisa.

Em um ano, por meio do Fundo Municipal da Saúde, a prefeitura de Chapecó assinou cinco contratos com clínicas de internação que, somados, se aproximam de R$ 1,7 milhões. Os documentos com erro na redação foram assinados pelo secretário municipal da saúde, João Lenz Neto.

A prefeitura informa que há 72 pessoas acolhidas em comunidade ou em residencial terapêutico no “Programa Mão Amiga”. O edital para o credenciamento das clínicas, no entanto, não especifica uma distinção entre internos vindos das ruas ou outros casos.

“Simbologia muito forte”

A política de internação compulsória na abordagem à população em situação de rua, em Chapecó, foi criada pela lei 8019/2024, que institucionaliza o “Programa Mão Amiga: Resgate da Dignidade”, hoje vendido como um exemplo. Cidades como Joinville, a mais populosa de Santa Catarina, já se espelham nos resultados de Chapecó para criarem seus programas.

A lei considera a população em situação de dependência química e alcoólica “o grupo populacional heterogêneo que utiliza os logradouros públicos e as áreas degradadas ou em situação de abandono como espaço para uso de entorpecentes”.

Para a professora Ianni Scarcelli, do Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo, o fato de contratos destinados ao tratamento de pessoas em sofrimento psíquico reutilizarem trechos de credenciamento de clínicas veterinárias não é apenas um erro administrativo. “É um sintoma de um modo de pensar que transforma a vida humana considerada incômoda em objeto de contenção, manejo e limpeza social”, diz.

Para a professora, adaptar os contratos para serviços de saúde mental não é um detalhe burocrático irrelevante, mas um erro “que carrega uma simbologia muito forte”. “Quando o sofrimento humano é tratado como prestação de serviço padronizado, sem singularidade, sem escuta e sem vínculo, não estamos falando de cuidado, mas de um arranjo econômico”.

Segundo a pesquisadora, este “não é só um erro de redação contratual”, mas um “posicionamento político e ético que mostra como certas políticas tratam gente como coisa, ou como bicho, com um objetivo que não é cuidar, mas excluir”.

Ianni Scarcelli, descreveu a prática de contratação de clínicas privadas para a população em situação de rua como uma “gestão da pobreza e da vulnerabilidade pela via do afastamento, e não pela via do direito e da implementação de políticas que garantam proteção social”.

Na visão dela, as práticas higienistas são centradas “na exclusão, na reclusão e, muitas vezes, na própria extinção das pessoas consideradas indesejáveis”.

A eficiência desse tipo de política, para a professora, é questionável. “Quando a internação compulsória se transforma em política e passa a ser usada como resposta sistemática à pobreza extrema, ao uso de drogas e à presença de pessoas nas ruas, desloca-se o problema do campo dos direitos para o assistencialismo inoperante”, destaca.

A prefeitura de Chapecó foi procurada para falar sobre os erros nos contratos, disponíveis no portal da transparência municipal, mas até o fechamento deste texto ainda não havia se pronunciado. O espaço está aberto para manifestação.



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