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Fábio Farah: Ele não se cansa de me surpreender…

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Fábio Tucci Farah, Ocupante da Cadeira nº 34 da Academia Brasileira de Hagiologia é pesquisador, escritor, jornalista. A mensagem para o Natal.

Fábio Tucci Farah

Ele não se cansa de me surpreender… Após mais de duas décadas esquadrinhando presépios, eu imaginava já conhecer cada detalhe da cena do nascimento de Cristo. E já ter sondado o íntimo de cada um de seus personagens, dos protagonistas aos visitantes, dos anjos no céu aos animais no estábulo. Em uma viagem recente, porém, algo despertou minha atenção. Poderia haver mais alguém ali, alguém que havia passado despercebido por mim durante esses anos todos… Quem seria aquela segunda mulher presente na Natividade de Nosso Senhor? E o que, afinal, ela desejava me revelar?

A primeira pista emergiu da floresta de Lachish, entre Jerusalém e a Faixa de Gaza. Quando arqueólogos se debruçaram sobre esse lugar esquecido – alvo frequente de saqueadores de antiguidades -, trouxeram à tona uma caverna funerária e um amplo pátio de aproximadamente 350 metros quadrados, possivelmente a entrada do jazigo de uma ilustre família judaica. A construção original poderia remontar a vinte séculos. Cruzes e inscrições indicavam que havia sido convertida em santuário e, entre os séculos IV e IX, se tornado destino de peregrinação cristã. As dezenas de lamparinas a óleo haviam honrado, por séculos, uma santa, uma santa chamada Salomé(1).

No Novo Testamento, havia uma Salomé bastante próxima a Maria e a seu Filho(2). Tradicionalmente identificada como a mãe dos apóstolos Tiago e João, ela havia se tornado uma ardorosa discípula. Além de marcar presença na crucificação, havia se arriscado indo ao sepulcro para ungir o corpo de Jesus. De acordo com os artigos sobre a descoberta arqueológica, porém, aquele túmulo havia pertencido a uma Salomé que havia assumido um importante papel no início da vida de Jesus entre nós, precisamente, na noite de Natal. Essa Salomé teria sido parteira de Nosso Senhor.

A presença de uma parteira era uma peça que não se encaixava muito bem no episódio do nascimento milagroso de Jesus. Conforme observou Santo Tomás de Aquino, citando outro gigante da Igreja: “Por isso, Jerônimo diz, contra Helvídio: ‘Não houve ali parteira, nem interveio o serviço zeloso de mulheres. Ela foi mãe e parteira. Envolveu o menino em panos’, diz ele, ‘e o colocou numa manjedoura’”(3). As palavras desses notáveis santos – e de inúmeros outros – eram mais do que suficientes para afastar de qualquer presépio aquela personagem inoportuna. Mas ela não desistiu de cruzar o meu caminho, da segunda vez, na reprodução de um afresco do século XII na Capadócia(4). Na curiosa cena, Salomé ajudava outra mulher a banhar o Menino Jesus após o divino nascimento. O que, no fim das contas, aquela mulher desejava me revelar?

O Protoevangelho de Tiago, um texto apócrifo de meados do século II, era a real inspiração das cenas do presépio com a intrusa Salomé. Ele nos conta que uma primeira parteira teria sido levada por São José à gruta, em Belém. E nem teria precisado exercer o ofício, pois ao chegar ali, testemunharia o extraordinário. Quando a forte luz deu uma trégua, ela contemplou o Menino Jesus sendo amamentado por Nossa Senhora. E deixou escapar: “Grande é para mim o dia de hoje, já que pude ver com meus próprios olhos um novo milagre”(5). Ao botar os pés para fora daquele espaço sagrado, ela se apressou em contar a novidade à mulher que vinha ao seu encontro: “Salomé, Salomé… tenho de te contar uma maravilha nunca vista: uma virgem deu à luz; coisa que, como sabes, não permite a natureza humana”(6).

 Sim, impossível para a natureza humana! Mais de dois milênios depois, diversas pessoas que cruzam meu caminho ainda esboçam a mesma incredulidade de Salomé: “não acreditarei em tal coisa, se não me for dado tocar com os dedos e examinar sua natureza”(7). A parteira Salomé pagaria um preço alto pelo atrevimento – a mão instantaneamente carbonizada. Arrependida, ela caiu de joelhos e suplicou pela cura. Um anjo lhe revelou o remédio: “Salomé, Salomé, Deus te escutou. Aproxima tua mão do menino, toma-o, e haverá para ti alegria e prazer”(8).

Provavelmente o episódio não passe de uma invenção piedosa do autor para defender uma verdade atestada pelo cristianismo desde o berço. A mão seca pela dúvida aponta para o que os doutores da Igreja não se cansaram de repetir. Salomé, bem como a sua anônima colega de ofício, não teriam sido eleitas pelas habilidades profissionais, mas sim, para testemunhar algo impossível para a natureza humana. Real ou fictícia, Salomé nos oferece um vislumbre bastante particular do mistério divino que excede toda a compreensão humana.

Às margens de todos os presépios no mundo, mais de dois mil anos após o nascimento de Cristo, ainda ecoam as palavras de uma testemunha desconhecida: “Hoje é meu grande dia! Vi com meus olhos um novo milagre”. E cada um de nós é chamado a fazer parte daquele momento extraordinário, não como meros espectadores. Cada um de nós é chamado, como a atrevida Salomé, a entrar em cena com nossos medos, anseios, angústias… incredulidade! Com um pouco de boa vontade, conseguimos escutar, na voz do anjo, o convite de Deus: “Toque o menino e terás alegria e prazer”. O Natal é o nosso grande dia! No Natal, nossos olhos contemplam uma maravilha jamais vista. E basta tocarmos em Deus na manjedoura para sermos curados da secura em nossas vidas. Basta carregarmos o Menino Jesus para, apesar de nossas mazelas, alcançarmos a verdadeira felicidade.

Ele não se cansa de nos surpreender!

 

(*) Fábio Tucci Farah é perito em relíquias sagradas da Arquidiocese de São Paulo, delegado brasileiro da International Crusade for Holy Relics (ICHR) e curador adjunto da Regalis Lipsanotheca, em Ourém.

(1) LIDMAN, Melanie. Burial cave dedicated to Jesus’ midwife Salome reveals treasures ahead of opening. The Times of Israel, Jerusalém, 20 dez. 2022. Disponível em: https://www.timesofisrael.com/burial-cave-dedicated-to-jesus-midwife-salome-reveals-treasures-ahead-of-opening. Acesso em: 26 nov. 2025.

(2) São Mateus se refere à “mãe dos filhos de Zebedeu” (Mt 27,56), identificada pela tradição como a Salomé nomeada por São Marcos (Mc 15,40; 16,1).    

(3) TOMÁS DE AQUINO. Summa Theologiae, III, q. 35, a. 6, ad 3, citando JERÔNIMO, Contra Helvidium, 4.

(4) O afresco pode ser apreciado na Karanlık Kilise (Igreja Escura), no Museu a Céu Aberto de Göreme, Capócia (Turquia).

(5) Proto-Evangelho de Tiago. In: Apócrifos e pseudo-epígrafos da Bíblia. São Paulo: Editora Cristã Novo Século, 2004, p. 527.

(6) Idem, p. 527.

(7) Idem, p. 527.

(8) Idem, p.528.

Créditos

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