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‘America First’ ou mediador global? O ano de Trump na geopolítica

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Sob o lema “America First”, o presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, apresentou em 17 de dezembro um balanço do primeiro ano de seu segundo mandato. Em discurso transmitido em horário nobre diretamente da Casa Branca, o republicano afirmou ter conseguido “acabar com oito guerras”.

Durante o pronunciamento de cerca de 18 minutos, Trump destacou conquistas econômicas, como o envio de cheques de US$ 1.776 para os americanos como “dividendo militar”, e posicionou os EUA como uma nação “respeitada” e “mais forte do que nunca”, pronta para um “boom econômico”.

No entanto, analistas questionam a visão de Trump como “pacificador”, apontando que os EUA participaram de apenas seis acordos de paz ou cessar-fogo desde janeiro de 2025, e muitos desses acordos já mostram sinais de instabilidade, como a retomada de violência na fronteira entre Tailândia e Camboja em dezembro, com ataques aéreos tailandeses, apenas dois meses após um suposto acordo de paz.

A análise do chefe de Estado desconsidera ainda intervenções diretas na Ucrânia e no Oriente Médio, tensões comerciais com o Brasil e um cerco militar à Venezuela.

‘Paz pela Força’

Embora Trump tenha sido eleito com a promessa de priorizar questões domésticas e reduzir o envolvimento externo dos EUA, sua administração manteve uma presença ativa em conflitos internacionais. O professor de Relações Internacionais da USP, Kai Enno Lehmann, explicou à IstoÉ que, embora líderes americanos historicamente adotem essa postura — como ocorreu na Coreia, no Vietnã e no Iraque —, o caso do republicano é diferente. “O problema é que Trump foi eleito prometendo encerrar esse envolvimento, mas ele está aumentando a presença americana e para os lados ‘errados’”, afirmou, ressaltando que isso pode afetar sua base eleitoral, composta por muitos isolacionistas

Vitelio Brustolin, professor da UFF (Universidade Federal Fluminense) e pesquisador em Harvard, declarou à IstoÉ que a contradição é mais retórica do que prática. Segundo ele, o “America First” não significou isolacionismo completo, mas um “engajamento seletivo”.

“Trump rejeita alianças automáticas, mas intervém diretamente quando entende que há impacto estratégico — seja energético, militar ou político — para os EUA”, ponderou.

Impasse na Ucrânia e no Oriente Médio

A promessa de encerrar a guerra na Ucrânia em 24 horas não se concretizou. O ano de 2025 foi marcado por altos e baixos: desde o embate público com Volodymyr Zelensky em fevereiro, quando Trump ameaçou retirar o apoio americano caso Kiev não aceitasse um acordo, até a cúpula com Vladimir Putin no Alasca, em agosto. Recentemente, o republicano provocou resistência ucraniana ao sinalizar que a Crimeia deveria permanecer sob controle russo.

Em dezembro, a administração Trump tentou viabilizar um “plano de paz de 28 pontos”, que exige concessões territoriais e limites militares à Ucrânia. O plano inclui itens como a adoção por Ucrânia de regras da UE sobre tolerância religiosa e proteção a minorias linguísticas, a abolição de tarifas alfandegárias entre Rússia e Ucrânia, a reconstrução conjunta da infraestrutura de gás ucraniana pelos EUA e Ucrânia, e um cessar-fogo imediato de 30 dias como proposta interina discutida em março em Jeddah.

No entanto, o conflito permanece ativo, com a Rússia tentando potencializar ganhos antes de qualquer assinatura. A Ucrânia respondeu com contrapropostas, rejeitando a exigência de ceder mais territórios do que os atualmente ocupados pela Rússia, e o Kremlin afirmou que as mudanças propostas pela Europa e Ucrânia não melhoram as perspectivas de paz. Além disso, o Congresso dos EUA aprovou uma nova lei de defesa que cria um fundo fiduciário para assistência militar à Ucrânia, garantindo continuidade independentemente de pressões da administração Trump para reter inteligência.

No Oriente Médio, Trump adotou a estratégia da “paz pela força”. Em junho, ordenou ataques aéreos que atingiram instalações nucleares iranianas e, em outubro, apresentou um plano de 20 pontos para Gaza, focando na desmilitarização e reconstrução sob supervisão internacional após a libertação de reféns pelo Hamas. Os ataques de junho representaram um marco, após duas décadas de debates sobre o programa nuclear iraniano, e posicionaram Israel como parceiro chave no combate ao Irã e grupos apoiados por ele. Trump deu um prazo até 5 de outubro para o Hamas aceitar o plano, e em 3 de outubro, o grupo concordou em liberar reféns, embora Netanyahu planeje discutir com Trump novas fases do plano e possíveis ataques adicionais ao Irã. Em seu discurso de dezembro, Trump afirmou ter “destruído a ameaça nuclear iraniana e encerrado a guerra em Gaza”, mas analistas alertam que questões pendentes, como o desarmamento do Hezbollah e a reconstrução pós-guerra, podem impulsionar a agenda do Oriente Médio em 2026.

Enquanto Trump encerra 2025 posicionando-se como o único capaz de solucionar crises globais, analistas alertaram para o risco institucional. Para Brustolin, a personalização da diplomacia enfraquece as estruturas internacionais e reduz a previsibilidade da política externa americana a longo prazo.

Já Kai Enno observou que a mentalidade de Trump não se compatibiliza com a complexidade desses conflitos e alertou para o risco de o republicano se posicionar como o “único” capaz de resolvê-los. “Ao contrário, ele vem se mostrando incapaz de resolver guerras, apesar da narrativa de que encerrou oito conflitos.”.

Ofensiva tarifária e a tensão com o Brasil

Na área econômica, abril de 2025 anunciou o lançamento de um pacote tarifário agressivo. Além de uma taxa universal de 10% e tarifas de 25% sobre o aço, o Brasil foi alvo de uma retaliação específica em julho. Trump anunciou tarifas de 50% sobre produtos brasileiros, justificando a medida como uma resposta a decisões do STF (Supremo Tribunal Federal) que, segundo o republicano, configuravam “censura” e “perseguição política” contra o ex-presidente Jair Bolsonaro (PL) — que foi condenado a 27 anos e três meses por tentativa de golpe de Estado.

A ordem executiva de 30 de julho impôs um dever ad valorem adicional de 40% sobre importações brasileiras, com exceções para setores como aeronaves civis, carne de porco e outros, e incluiu sanções contra Alexandre de Moraes. Eduardo Bolsonaro, filho do ex-presidente, afirmou ter convencido Trump a adotar as tarifas.

A estratégia, entretanto, não se mostrou tão eficaz. Em novembro, após rodadas de negociação, os EUA recuaram das taxas sobre carnes e café brasileiros. O Senado dos EUA votou em outubro contra as tarifas de 50%, terminando a emergência nacional declarada por Trump para impô-las, e em dezembro, o Tesouro americano retirou sanções contra o ministro Alexandre de Moraes do STF.

Para Lehmann, essa instabilidade prejudica o mercado interno: “Ninguém quer investir nos EUA sem ter certeza sobre a política comercial”. Brustolin complementou que o uso de tarifas como ferramenta de coerção faz com que os EUA sejam vistos menos como mediadores e mais como “parte interessada e coercitiva”, incentivando outros países a buscarem alternativas comerciais. O presidente brasileiro Lula respondeu às tarifas com um ensaio propondo diálogo aberto com Trump.

Cerco à Venezuela

O encerramento do ano é marcado pela escalada da tensão entre Venezuela e EUA. Em dezembro, os americanos intensificaram a mobilização militar no Caribe para “cercar completamente” a Venezuela e asfixiar o governo de Nicolás Maduro. O bloqueio total a petroleiros levou o líder venezuelano a ordenar escoltas militares, elevando o risco de um confronto naval direto.

Trump ordenou um “bloqueio total e completo” de todos os petroleiros sancionados entrando ou saindo da Venezuela, uma medida que marca uma escalada dramática nas pressões dos EUA, com Maduro alertando líderes mundiais sobre uma “campanha militar monstruosa” envolvendo forças navais e aéreas americanas. Trump destacou que “o país está cercado”, enquanto Maduro declarou que “qualquer governo títere cairia em dois dias”, mas que sua revolução resistirá a uma possível invasão terrestre. Trump não descartou uma guerra com a Venezuela, repetindo ameaças de ataques “em breve” desde setembro, o que pode impactar mercados de óleo e até relações com Taiwan devido a embargos.

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