O episódio revelou, antes de tudo, a profunda desconexão entre a bolha digital da extrema direita e a materialidade da vida do brasileiro comum.
Essa semana, assistimos a um ensaio quase pedagógico sobre os limites da política performática. Um conjunto de políticos e influenciadores de direita, em busca de holofotes e de um inimigo conveniente, tentou transformar um par de chinelos em campo de batalha ideológica. O alvo: a Alpargatas, controladora da Havaianas. O método: um boicote vocal, inflamado nas redes sociais. O resultado: um retumbante fracasso, confirmado pela rápida recuperação das ações da empresa e, mais importante, pelo silêncio eloquente das prateleiras dos supermercados.
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O episódio revelou, antes de tudo, a profunda desconexão entre a bolha digital da extrema direita e a materialidade da vida do brasileiro comum. Enquanto alguns parlamentares e digital influencers convocavam a ira contra uma campanha publicitária supostamente “esquerdista”, o consumidor real (aquele que enfrenta a fila do caixa, calcula o orçamento do mês e precisa de um produto durável a preço acessível) seguiu fazendo o que sempre fez: comprando o que considera bom, barato e necessário.
O mercado financeiro, atento aos fundamentos econômicos e não ao teatro político, entendeu isso imediatamente. A queda pontual das ações foi um reflexo mecânico de um momento de baixa liquidez, rapidamente corrigido quando ficou claro que o boicote não passava de vento. Os analistas não se deixaram levar pela narrativa: focaram no lucro líquido que saltou 199%, no Ebitda recorde, na estruturada redução de dívidas e na expansão internacional. Ou seja, olharam para o que importa: a saúde operacional da empresa e sua capacidade de gerar valor real.
Este fracasso é sintomático. Ele demonstra que a estratégia de criar pânicos morais e guerras culturais em torno de marcas de consumo massivo esbarra em um muro chamado necessidade cotidiana. O povo brasileiro, especialmente a classe trabalhadora que é a espinha dorsal do consumo no país, não tem o luxo de escolher produtos baseados em delírios ideológicos de uma elite desconectada. A lógica do dia a dia é pragmática: qualidade, preço e durabilidade. Valores que a Havaianas, em suas melhores versões, sempre soube entregar.
Há, porém, uma lição mais profunda para a esquerda neste episódio. A direita tenta, incessantemente, importar para o Brasil as “culture wars” que assolam os Estados Unidos, onde o consumo efetivamente se tribalizou. O que o caso Havaianas mostra é que nosso tecido social, especialmente nas classes populares, possui anticorpos contra esse vírus. A cultura do povo é mais complexa, mais sinuosa e menos maniqueísta do que os roteiros simplistas das redes sociais.
Isso não é motivo para complacência, mas para uma reflexão estratégica. Enquanto a direita se desgasta em boicotes inócuos, a esquerda deve aprofundar o debate que realmente importa: quem se beneficia do extraordinário sucesso financeiro de gigantes como a Alpargatas? Como garantir que os R$ 171,3 milhões de lucro trimestral se traduzam em melhores salários, condições de trabalho e investimento na indústria nacional? A verdadeira batalha não está no simbolismo vazio de uma campanha publicitária, mas na disputa concreta pela distribuição da riqueza que o trabalho coletivo gera.
O boicote da direita não fez efeito porque tentou criar uma divisão onde existe, fundamentalmente, uma necessidade comum. O chinelo de dedo, item democrático por excelência, resistiu ao barulho. A tarefa progressista agora é garantir que os pés que calçam esses chinelos também estejam firmes em um chão de justiça social e direitos garantidos. Aí sim, teremos uma vitória que vai muito além das cotações da bolsa.
