- Jair Bolsonaro avaliza a pré-candidatura de seu filho, Flávio Bolsonaro, à presidência, visando a continuidade do bolsonarismo.
- A decisão de Bolsonaro de apoiar Flávio é vista como uma estratégia para concentrar poder, mas pode fragmentar a direita brasileira.
- Críticos argumentam que a escolha familiar ignora a pluralidade da direita e o esgotamento do bolsonarismo como projeto nacional.
- A aposta em Flávio Bolsonaro é considerada uma manobra defensiva diante da fragilidade política e jurídica de Jair Bolsonaro.
A decisão de Jair Bolsonaro de avalizar a pré-candidatura presidencial do filho, o senador Flávio Bolsonaro, não se limita a um gesto de continuidade política. Ela revela um erro estratégico profundo: a crença de que o bolsonarismo se confunde com o país — e de que seus votos são automaticamente transferíveis para além do próprio núcleo ideológico. Não são.
O movimento ocorre em um contexto de retração evidente. Bolsonaro está juridicamente impedido, politicamente fragilizado e institucionalmente isolado. Diante disso, sua reação não é ampliar alianças ou reconstruir pontes, mas fechar o jogo e concentrar poder. Ao optar pela sucessão familiar, transforma capital político em patrimônio privado, como se liderança fosse bem transmissível. A política, no entanto, não opera segundo a lógica do testamento — sobretudo quando identidade é confundida com maioria eleitoral.
Desde 2018, o bolsonarismo consolidou uma base fiel, ruidosa e altamente mobilizada. Mas essa base nunca correspondeu à totalidade da direita brasileira, tampouco funcionou como bloco homogêneo. Parte relevante dos votos que levaram Bolsonaro ao Planalto resultou de circunstâncias específicas: rejeição ao sistema, antipetismo conjuntural e ausência de alternativas viáveis naquele momento. Eram votos voláteis — e a volatilidade não se transfere por sobrenome.
Ao ungir Flávio Bolsonaro como sucessor, Bolsonaro parece acreditar que o nome da família basta para manter unido um campo que sempre foi plural, competitivo e atravessado por disputas internas. A decisão ignora um dado central do tabuleiro político: o bolsonarismo possui votos próprios, mas a direita brasileira abriga projetos distintos, ambições concorrentes e lideranças que aguardavam a abertura da corrida presidencial. Ao fechar essa possibilidade, Bolsonaro não agrega — fragmenta.
A imposição de um herdeiro não organiza a direita; tensiona-a. Ao substituir o debate por lealdade e a competição por obediência, o bolsonarismo converte aliados potenciais em dissidências silenciosas. O resultado tende a ser menos convergência e mais dispersão: candidaturas paralelas, projetos regionais autônomos e um campo conservador dividido entre fidelidade pessoal e viabilidade eleitoral.
A escolha do filho tampouco se ancora em densidade programática ou trajetória nacional consolidada. Fundamenta-se na confiança absoluta e no controle. Em um movimento moldado pela desconfiança permanente das instituições, da imprensa e da política profissional, a família surge como último espaço de previsibilidade. O problema é que previsibilidade interna não gera, por si só, competitividade externa — especialmente em um país complexo, desigual e exausto de confrontos permanentes.
O gesto também evidencia o esgotamento de um projeto de expansão. Em vez de disputar hegemonia dentro da própria direita, o bolsonarismo prefere preservar-se como identidade fechada. Em vez de dialogar com correntes conservadoras não radicalizadas, opta por submetê-las ou descartá-las. Em vez de formular respostas para desafios estruturais do país, reafirma a fidelidade como critério central de pertencimento político. O efeito não é fortalecimento, mas redução do campo.
Do ponto de vista eleitoral, trata-se de uma escolha defensiva. Bolsonaro sabe que carrega rejeições profundas, acumuladas por uma gestão marcada pelo conflito institucional, pelo desprezo às políticas públicas e pela retórica autoritária. Transferir o protagonismo ao filho é uma tentativa de manter mobilizado o núcleo mais fiel, ainda que isso implique perder capacidade de articulação com outros setores da direita.
Flávio Bolsonaro recebe o espólio do bolsonarismo, mas não o conjunto do campo conservador. Parte com uma base leal, porém limitada. Ganha visibilidade, mas também carrega passivos políticos e simbólicos: investigações, controvérsias e a associação direta a um projeto que fracassou em produzir consensos mínimos e respostas duradouras às crises do país. O peso do legado acompanha o nome.
Ao antecipar a sucessão, Bolsonaro tenta ainda interditar o debate sobre o esgotamento do bolsonarismo como projeto nacional. Em vez de refletir sobre as perdas de apoio, o isolamento internacional e a incapacidade de converter retórica em políticas públicas estruturantes, o movimento escolhe reafirmar a obediência como valor político supremo.
O gesto não expressa força, mas receio. Medo da dispersão, do esquecimento e da irrelevância. Medo, sobretudo, de que o bolsonarismo seja lembrado não como um projeto político consistente, mas como um surto de mobilização sustentado por uma figura mítica — mais ruidosa do que dirigente, incapaz de organizar maiorias duradouras.
Quando um movimento político passa a confundir sua base com o país — e sua família com o futuro — deixa de disputar consensos e passa apenas a administrar limites. Projetos que abdicam de convencer para se dedicar a controlar não constroem legado: sobrevivem por inércia, até que o mito se desgaste, a base se reduza e reste apenas o registro de um poder que falou alto, mas nunca soube governar o tempo.
*Marcelo Copelli é jornalista correspondente na Europa, editor de Política e pesquisador na área de Comunicação.
**Este artigo não reflete, necessariamente, a opinião da Revista Fórum.
