A história da chegada do povo negro à Bahia é antiga. Os navios negreiros, estudados em tantos livros didáticos, estão no imaginário da população, como o lugar que trouxe tantos escravizados para Salvador.
No entanto, com o passar do tempo, novos estudos, novas artes e artistas repensaram onde essas pessoas realmente foram trazidas. Uma delas, a artista senegalesa T.I.E Ngnima Sarr, que carrega em sua arte sua voz e a de todas as mulheres que vieram antes dela.
Foi assim que T.I.E chegou à Bahia, convidada pelo projeto “Eu Sou Um Oceano Negro” para apresentar seu projeto “Mawu’s Daughters”, que pensa a regeneração da diáspora negra a partir de práticas afetivas, espirituais e femininas.
A ideia não é revisitar a história da violência marítima apenas pela dor, mas sim reimaginar o oceano como um território de recomposição e renascimento. É daí que nasce seu projeto mais recente, a “Odisseia no Útero”.
O conceito da arte de T.I.E pode ser resumido em uma única pergunta: “e se o útero fosse um navio?”. E se o primeiro espaço de travessia, antes dos barcos, dos portos, das rotas forçadas, fosse o corpo da mulher negra?
“E se pudéssemos regenerar, pela força simbólica do útero, as nossas mortes traumáticas, nossas vidas, nossas relações com o mundo, com os outros e com a própria história afro-descendente, tudo isso pelo olhar da mulher negra?”, questiona.
“Penso no útero como um lugar de reconstrução das nossas mortes, das nossas vidas, das nossas relações com o mundo e com a própria história afro-descendente. É um retorno ao lugar da criação, pela mulher e pelo feminino negro“, diz T.I.E.
“A travessia é uma conversa silenciosa sobre memória, ancestralidade e território”, explica. “É um trabalho em progresso, que mistura performance, música, experimentação sonora e até documentário. Na Bahia, deixo a ideia ganhar a forma que cada mulher traz em seu próprio corpo“, conta.
T.I.E na Bahia
Segundo T.I.E, a Bahia, com seus terreiros, seus altares domésticos, suas águas, seus tambores e sua comida preparada para ancestrais, é um campo fértil para esse tipo de pesquisa, e ela o aproveitou.
Na Bahia, ela se aproximou de grupos formados por mulheres que trabalham saberes espirituais afro-atlânticos, para pensar como saberes que não devem ser ditos, só transmitidos, se sustentam ao longo do tempo.
“Essas mulheres carregam um saber antigo, transformado pela experiência da diáspora e da deportação. Aqui, estou em imersão total, como artista, mas também como mulher que se reconhece nessa história“, diz.
Bahia, África e Senegal
No projeto, T.I.E colaborou com a artista Delphine Diallo, fotógrafa e videomaker franco-senegalesa, criando juntas uma instalação-performance que será apresentada na Casa do Benin, com abertura marcada para esta sexta-feira, 7, às 15h.
“Estamos construindo uma narrativa que não é apenas nossa. É uma narrativa que atravessa o oceano. Que vem antes de nós. Que nos ultrapassa. A arte é só a superfície onde isso aparece”, afirma.
Para Delphine, o projeto carrega o mesmo sentimento: “O Oceano Negro é pensado como uma ponte, não uma fronteira. Foi uma experiência extraordinária de expansão criativa, uma forma de união e de evolução em parceria com o futuro“.
Ela afirma que essa união simbólica entre as margens do Atlântico (Bahia, Senegal, França e Estados Unidos) revela algo essencial sobre o que ela chama de “arte profunda”.
“Hoje o mundo pede uma arte que tenha profundidade. E essa profundidade vem dos ancestrais africanos da diáspora. É uma arte enraizada na espiritualidade e nos corpos que buscam libertar-se das estruturas coloniais, patriarcais e capitalistas que ainda extraem e oprimem”, diz.
Nas fotografias e retratos de Delphine Diallo, o olhar feminino é o centro. A artista acredita que a transformação do mundo e da arte passa pela mulher e pela reconexão com o corpo. “São as mulheres que devem guiar a liberação do nosso coração e da arte em si”, afirma.
“Todas as mulheres do mundo têm um útero. Elas trazem a memória, são guardiãs de espaços multidimensionais, porque carregam dentro de si a inteligência ancestral“, explica.
É a partir desse pensamento que Delphine cunhou os termos ‘WombTech’ e ‘SoulTech’: tecnologias espirituais baseadas no corpo, na intuição e na ancestralidade. “A mulher sabe, porque ela traz a vida em um útero cheio de água. Ela é o futuro. E as mulheres negras farão a libertação dessa objetificação”, diz.
Seus retratos, marcados por contrastes suaves e simbolismos sutis, são menos sobre representação e mais sobre reencontro. A fotografia, para ela, é uma forma de ativar a memória e visualizar o que ainda não existe.
“Quando fotografo corpos negros hoje, produzo imagens do futuro e do passado ao mesmo tempo. O futuro não existe se não o imaginarmos. Estar aqui, agora, falando com vocês, isso já é o futuro”, explica.
Assim, para as artistas, a exposição precisava passar pela Bahia, berço de tantos conceitos importantes para sua arte. “A Bahia é a África colada à América antes de se separar“, diz T.I.E.
“Quando chego à Bahia, sinto-me ancorada e reconectada. Como no Senegal. Aqui a realidade tem várias dimensões. A vida não é só racional, não é só pensamento. É presença, é corpo, é pulsação. É a existência viva de quem ainda está criando o mundo”, conta.
“Minha experiência aqui foi um vórtice. Um verdadeiro vórtice“, finaliza.
