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A cidade do esquecimento: o provisório como território do abandono

by admin

Retomar a escrita sobre a cidade provisória constituída no pós-enchente do Rio Grande do Sul não se dá por entusiasmo, mas por um dever de memória. Não se trata de narrar a catástrofe hídrica que destruiu bairros, casas e infraestruturas, mas de compreender o que emergiu no seu rescaldo: um território cuja precariedade material se associa à precariedade simbólica, resultando em modos de habitar que produzem, simultaneamente, despertencimento e exclusão. Se a casa, na formulação de Gaston Bachelard, é o lugar da memória e da interioridade, onde “habitar a casa é habitar a si mesmo” (Bachelard, 1957), o que significa habitar um provisório, cuja precariedade impede vínculos, memórias, histórias e rituais do antigo morar?

A enchente não retirou apenas o abrigo físico, mas desestabilizou as práticas e temporalidades que configuram o cotidiano e a experiência subjetiva de pertencimento. As águas levaram memórias, mas também a possibilidade de projeção futura, de acumulação simbólica e de reconhecimento no território. No lugar da casa como morada de histórias, surgem módulos habitacionais, alojamentos improvisados, “soluções emergenciais” concebidas para resolver o problema imediato do desabrigo. A provisoriedade, contudo, torna-se permanente, instituindo um regime de suspensão: nem casa, nem abrigo, um entrelugar que desafia as categorias tradicionais da urbanidade.

No Estado, cerca de 12 mil famílias ainda aguardam moradia permanente em 2025, segundo dados oficiais. O provisório se estende. A espera vira cotidiano e o cotidiano, quando esquecido, vira abandono.

Esses bairros, nomeados com eufemismos burocráticos : “comunidades provisórias”, “soluções habitacionais emergenciais”, são, na verdade, zonas de suspensão da cidadania. Loïc Wacquant poderia nomear esse tipo de solução como “territórios do abandono” os espaços nos quais o Estado se ausenta na provisão de políticas sociais, equipamentos públicos e infraestrutura básica (Wacquant, 2007). Nesses territórios, a ausência material se converte em um abandono institucional, que naturaliza a precariedade como destino das populações desabrigadas. No contexto pós-enchente de Porto Alegre, os bairros de casas provisórias constituídos na zona norte e em municípios metropolitanos operam precisamente sob esta lógica, ausência do Estado para reconstruir laços, prover serviços de saúde, educação, mobilidade e condições adequadas de habitar.

A concentração de populações que perderam suas casas em territórios periféricos e homogêneos revela a contradição de uma “coletividade imposta”, frequentemente justificada em nome da racionalidade da gestão emergencial. Ao deslocar milhares de pessoas para áreas isoladas, sem considerar as redes de sociabilidade e apoio mútuo previamente existentes, o poder público opera uma racionalidade instrumental que ignora a dimensão relacional do habitar. Porque uma casa provisória substitui paredes, mas não substitui redes, e, quando redes caem a vulnerabilidade vira regra.

Paradoxalmente, a imposição de coletividade pode desfazer aquilo que as periferias urbanas brasileiras historicamente desenvolveram, estruturas informais de solidariedade, redes de cuidado e circuitos de sobrevivência baseados na proximidade e na reciprocidade. Estudos sobre favelas e ocupações urbanas no Brasil apontam justamente para o caráter relacional dessas redes, que mitigam a violência estrutural do Estado ausente (Perlman, 2010; Caldeira, 2000). Nas cidades provisórias, entretanto, essas redes não apenas não são reconhecidas, como são desarticuladas pelo deslocamento compulsório, pela instabilidade e pela vigilância.

O aumento da criminalidade nas áreas de reassentamento, observado de forma empírica no caso de Porto Alegre, deve ser compreendido não como uma patologia moral dos moradores, mas como um efeito direto da precarização urbana: ausência de equipamentos públicos, impossibilidade de geração de renda local, circulação restrita e ruptura dos mecanismos informais de regulação social. Wacquant argumenta que o abandono estatal tende a produzir “ilha de miséria moralizada”, isto é, espaços onde a violência e a desigualdade tornam-se moralmente atribuídas aos indivíduos, e não às estruturas políticas que as produzem (Wacquant, 2007).

Se a solução estatal opera pela homogeneização, vigilância e controle, movimentos sociais urbanos têm construído outra resposta: a ocupação de edifícios vazios no centro da cidade, muitas vezes abandonados há décadas como resultado de processos de especulação e financeirização do solo urbano. Em Porto Alegre, assim como em várias capitais do país, coletivos, associações e frentes de moradia têm convertido imóveis subutilizados em espaços de residência, articulação política e reconstrução de sociabilidades.

Ao contrário da coletividade imposta, nesses contextos a vida comunal emerge de práticas autogestionadas, divisão de trabalho, assembleias, cuidados compartilhados, cozinhas coletivas, padronização participativa de regras, pedagogias de convivência. Enquanto as cidades provisórias selam a precariedade por meio da regulação estatal, as ocupações urbanas tentam transformar precariedade em potência associativa, produzindo uma reapropriação do espaço urbano como direito, reivindicação e invenção política.

A repressão cotidiana a essas ocupações (despejos, criminalização, corte de água e luz, perseguição jurídica) explicita outra faceta do Estado contemporâneo, sua intolerância a formas autônomas de produção de cidade, especialmente quando mobilizam discursos de direito à moradia e contestação da especulação imobiliária. Curiosamente, o mesmo Estado que tolera edifícios vazios e degradados no centro por anos, por considerá-los patrimônio privado, mobiliza-se violentamente quando comunidades tentam convertê-los em lugar de moradia, promovendo soluções periféricas que geram grandes contradições sobre qual é o papel efetivo do estado no urbanismo.

Se, para Wacquant (2007), os territórios do abandono são espaços de gestão da marginalidade, as ocupações urbanas são tentativas de recusa desse destino, produzindo, ainda que precariamente, o direito de produzir e ocupar o espaço urbano como obra coletiva e não como mercadoria.

No pós-enchente do Rio Grande do Sul, esses dois modelos coexistem e tensionam-se, o modelo que produz esquecimento por meio da territorialização do provisório, e o modelo que produz memória, por meio da apropriação do existente. No primeiro, a cidade provisória funciona como dispositivo de silenciamento e no segundo, a ocupação é uma afirmação teimosamente política de que habitar continua sendo um ato coletivo de construção de mundo.

Porto Alegre segue funcionando, reconstruindo-se, discutindo futuro, planejando obras, eventos, revitalizações. Mas, os bairros de moradia provisória, vivem uma outra cidade,  uma cidade que não voltou. Uma cidade de gente que perdeu a casa, o bairro, a comunidade, o cotidiano e, agora, perde também a visibilidade.

Não são casas que faltam, é projeto de habitar. Se a casa é memória, como lembra Bachelard, então habitar esses módulos é habitar a ausência, a suspensão, o provisório sem promessa. O que se ergueu foi um bairro para guardar gente e, com ela, guardar o incômodo social que a tragédia revelou.

A resposta governamental exibe, assim, traços típicos do urbanismo emergencial: rápido, mínimo, improvisado, orientado mais a evitar o colapso político do que a reconstruir a vida social. Os módulos habitacionais e as cidades provisórias não configuram propriamente políticas habitacionais, mas dispositivos de contenção. O objetivo não é reparar o tecido urbano destruído, mas impedir que ele invada o espaço urbano formal, visível, regulado. O provisório, nesse sentido, funciona como fronteira: mantém a crise longe do olhar e, portanto, longe da esfera pública de contestação.

O desafio que se coloca não é apenas reconstruir moradias, mas reconstruir condições de habitar, o que implica tempo, recursos, cuidado, escuta e compromisso. Sem isso, o futuro será apenas prolongamento do improviso que deixa de ser emergência para se tornar projeto, um projeto de exclusão, que define quem é lembrado e quem será, definitivamente, esquecido.

*Jagna Stefani dos Santos é arquiteta e urbanista.

**Este é um artigo de opinião e não necessariamente representa a linha editorial do Brasil do Fato.

Referências (seleção):

  • Bachelard, G. (1957). La Poétique de l’Espace. PUF.
  • Bourdieu, P. (1990). The Logic of Practice. Stanford UP.
  • Caldeira, T. (2000). City of Walls. UC Press.
  • Lefebvre, H. (1968). Le Droit à la Ville. Anthropos.
  • Perlman, J. (2010). Favela. Oxford UP.
  • Rolnik, R. (2015). Guerra dos lugares. Boitempo.
  • Sennett, R. (2012). Together. Yale UP.
  • Wacquant, L. (2007). Territories of Urban Exclusion and Advanced Marginality. Polity.

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