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A “foto proibida” que expôs o racismo no futebol holandês

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Foto tirada por Guus Dubbelman que mostra divisão racial entre jogadores da Holanda

Em 17 de junho de 1996, quando a seleção holandesa disputava a Eurocopa na Inglaterra, o fotógrafo Guus Dubbelman registrou a imagem mais controversa da história do futebol holandês. A foto mostra jogadores negros e brancos almoçando em mesas separadas no jardim da concentração.

A foto, porém, era apenas a ponta do iceberg de uma segregação racial profunda dentro do elenco. Naquele período, as principais estrelas da equipe eram, em sua maioria, jogadores negros como Clarence Seedorf, Edgar Davids — nascidos no Suriname — e Patrick Kluivert, filho de surinameses.

Após a classificação da Holanda para a Eurocopa, garantida por dois gols de Kluivert, ele, Seedorf e Davids concederam entrevista à emissora NOS e deram origem a um termo que ficaria marcado na história da seleção: “De Kabel”. A expressão, usada por Seedorf, significava algo como “o cabo” ou “a linha” em português, e era uma metáfora para a sintonia e a amizade entre os cinco jogadores negros que aparecem na foto de Guus Dubbelman. Além dos três, o grupo era composto pelos zagueiros Winston Bogarde e Michael Reiziger.

Contudo, parte da imprensa interpretou o termo de outra forma. Alguns jornalistas o viram como um sinal de divisão dentro do elenco, como se “o kabel” representasse um grupo fechado formado pelas três jovens estrelas negras em oposição ao restante da equipe, composta majoritariamente por jogadores brancos.

O apelido, que inicialmente expressava apenas camaradagem, trescalou a discussão sobre a suposta cisão racial no vestiário holandês. Essa tensão voltaria a ganhar força meses depois, durante a Eurocopa, quando novas disputas internas vieram à tona.

Seedorf, Kluivert e Davids, jogadores de origem surinamesa que defendiam a seleção da Holanda

O clima piorou logo no primeiro jogo da competição. O técnico Guus Hiddink poupou um dos jogadores negros e mudou outros dois de posição, afirmando que eles precisavam jogar “mais com a cabeça e menos com o coração”. Seedorf rebateu com ironia, chamando o treinador de “burro”.

No jogo seguinte, Seedorf foi substituído ainda no início da partida. No banco de reservas, ele e Davids tiveram uma conversa que rapidamente ganhou repercussão mundial. Durante o diálogo, Seedorf detonou o técnico por “lamber o saco dos jogadores brancos para ver o time melhorar”. Um dia depois, Hiddink decidiu dispensá-lo da seleção.

O resultado: após uma classificação sofrida para o mata-mata, a Holanda foi eliminada para a França logo nas oitavas-de-final.

Mais tarde, jogadores brancos como Van der Sar e Mulder tentaram minimizar o episódio da “foto proibida”. Disseram que os colegas negros apenas compartilhavam pensamentos, brincadeiras e pratos preferidos, e que por isso estavam sentados em mesas separadas. A explicação, porém, só agravou a situação.

Dias depois, surgiu a foto que confirmaria a cisão. Nela, os jogadores aparecem claramente divididos entre mesas, e o técnico, em pé, levanta o braço em um gesto interpretado como sinal de frustração ou tentativa de intervir.

Como começou o racha?

O conflito que mais tarde atingiria a seleção holandesa teve início dentro do Ajax, maior time do país, na década de 1990. À medida que o clube voltava a dominar o futebol europeu, um incômodo crescia entre os jovens talentos negros do elenco: a enorme diferença salarial em relação aos brancos.

Danny Blind, na época com 34 anos, e Ronald de Boer, de 26, recebiam até cinco vezes mais do que os mais jovens, mesmo quando estes eram decisivos em campo. Entre os insatisfeitos estava Winston Bogarde, nascido em Roterdã e também de ascendência surinamesa, que tinha 24 anos na época. Próximo de Seedorf, Kluivert e Davids, ele sempre foi direto ao tratar do tema. Em 2006, declarou à revista Profile que “a cor da pele dos jogadores interferia nos salários que recebiam”.

Maarten Oldenhof, diretor comercial do clube nos anos 1990, revelou que o Ajax dividia os atletas em categorias salariais: A para os principais nomes, B para os medianos e C para os estrangeiros ou jogadores recém-promovidos da base. Na prática, essa política mantinha os jovens negros em faixas salariais mais baixas, mesmo com protagonismo dentro de campo.

As justificativas oficiais nunca convenceram o grupo. O mal-estar criado pelo tratamento desigual se espalhou e ultrapassou os muros do clube. Quando os mesmos jogadores se reencontraram na seleção, as tensões acumuladas do Ajax serviram como estopim para a crise que culminaria na famosa “foto proibida” e no racha histórico da equipe holandesa.



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