Home » ADPF 973: STF refuta violência racial sistêmica e minimiza omissão estatal

ADPF 973: STF refuta violência racial sistêmica e minimiza omissão estatal

by admin

Por Hédio da Silva Jr*

 

A Corte Suprema decidiu ontem que transcorridos 15 anos desde a promulgação da lei federal n. 12.288/10, o Estatuto da Igualdade Racial, que determina a implementação de uma Política Nacional de Promoção da Igualdade Racial – PNPIR (art. 56), resta ao Estado dedicar-se à revisão de um outro plano, o PLANAPIR, instituído por decreto.

Anote-se que ao longo das últimas décadas a Corte Guardiã da Constituição Federal proferiu inúmeras, repito, inúmeras deliberações assegurando efetividade a direitos constitucionais da população negra, do povo de Terreiro e das comunidades quilombolas.

Um exemplo cabal de pronunciamento judicioso e paradigmático foi o julgamento da ADPF 186, em abril de 2012, que pela primeira vez reconheceu a constitucionalidade das ações afirmativas na modalidade cotas raciais no acesso ao ensino superior, inauguradas em 2002 pela UERJ e UNEB e replicadas em várias universidades do país graças à incessante atuação do Movimento Negro.

A propósito, naquele mesmo ano de 2012, no mês de setembro, era adotada a denominada lei das cotas nas universidades, revisada e ampliada recentemente.

Convenhamos no entanto que mais importante do que examinar meticulosamente a relevância da substituição do PNPIR pelo PLANAPIR, o STF poderia ter se debruçado, a título de exemplo, sobre a efetividade de dois preceitos constitucionais duramente conquistados pelo Movimento Negro na Assembleia Nacional Constituinte: o art. 242, § 1º, reproduzido pelo art. 26, § 4º, da LDB:

“O ensino da História do Brasil levará em conta as contribuições das diferentes culturas e etnias para a formação do povo brasileiro, especialmente das matrizes indígena, africana e européia”.

O segundo preceito constitucional consta do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias:

ADCT, Art. 68. Aos remanescentes das comunidades dos quilombos que estejam ocupando suas terras é reconhecida a propriedade definitiva, devendo o Estado emitir-lhes os títulos respectivos.

Passadas quase quatro décadas da promulgação da Constituição da República, uma análise mesmo superficial da efetividade destes preceptivos evidenciaria, a título de ilustração, que há poucas semanas equipes da PM ingressaram esbaforidas numa escola para “investigar” a razão pela qual uma aluna havia feito o desenho de um Orixá.

De seu turno, confrontado com registros do INCRA, o censo de 2022 demonstra que das cerca de 8.400 comunidades de quilombos espalhadas pelo Brasil, 25 (vinte e cinco) possuem título definitivo de propriedade.

Acerca da igualdade processual, devido processo legal, segurança jurídica, imparcialidade dentre outros, assim se manifestou o STF no julgamento do RE 635659/SP, leading case do Tema 506, sobre porte de pequena quantidade de maconha para uso pessoal:

“(…) O branco, para ser considerado traficante, tem de ter 80% a mais que o preto ou pardo. (…) Isso realmente vem gerando uma discricionariedade exagerada, insisto, no início da autoridade policial, passando pelo Ministério Público e chegando ao Poder Judiciário. Todo sistema de persecução penal vem gerando discriminação, porque as medianas quantitativas são muito diferentes nos critérios de grau de instrução, idade e cor da pele. Não há razoabilidade para isso. O estudo demonstra que não há razoabilidade para isso. (…) Por exemplo, um analfabeto negro e jovem leva desvantagem em relação a um branco maior de 30 anos, com curso superior, que pode ter, às vezes, até 136% a mais de droga. Não há razoabilidade nisso. (STF – RE 635.659 – Rel. Gilmar Mendes, j. 26.6.24 – extratos do voto vista do Ministro Alexandre de Moraes)

Com tudo isso, entretanto, na ADPF em tela a Corte Suprema recusou-se a proclamar que: 1. há violação massiva e generalizada de direitos fundamentais da população negra; 2. este estado de coisas persiste ao longo dos séculos, sem olvidarmos que há avanços e conquistas relevantes; 3. ações fragmentadas e soluções individuais são flagrantemente insuficientes; 4. há necessidade premente de atuação coordenada de múltiplos órgãos públicos (extratos do voto vencido do Presidente Edson Fachin).

Vale dizer, ao invés de reconhecer o estado de coisas inconstitucional e atribuir responsabilidades, preferiu a Corte Suprema refugiar-se no balsâmico e edulcorado racismo estrutural.

Emerge assim a primeira jurisprudência fundada no tal racismo estrutural: reconhece o problema mas desonera responsabilidades, ou, quando muito, manda substituir PNPIR por PLANAPIR ou quiçá um plano decenal, milenar…

Segue a luta!!!

 

*Advogado, mestre e doutor em Direito pela PUC-SP, fundador do Jusracial e do Idafro – @drhediosilva



Créditos

You may also like