O Brasil vivenciou nas últimas semanas uma nova escalada de violência contra as mulheres, cenário que ganhou visibilidade na imprensa e impulsionou mobilizações em diversas cidades do país. Em Porto Alegre, a manifestação aconteceu neste sábado (6), com concentração na Praça da Matriz, espaço simbólico que reúne os três poderes do Estado. O ato culminou com o encerramento do Festival Mulheres em Luta (MEL) e com a inauguração da sede do movimento. Neste domingo (7), novos atos serão realizados em diversas cidades brasileiras.
Um dos momentos mais emblemáticos foi a instalação de inúmeros pares de sapatos, organizada por artistas da Capital, em frente ao Palácio Piratini, sede do governo estadual, e na Praça da Matriz. A intervenção simbolizou as mulheres assassinadas e as vidas interrompidas pela violência de gênero, materializando, em pleno centro político, a dimensão da crise que atinge o país. As manifestantes evocaram e escreveram o nome das mulheres vítimas de feminicídio. Após a intervenção, foi realizada uma caminhada pelo centro da cidade até a sede do MEL, conduzida pelo Bloco das Pretas.

Violência em alta no país
A mobilização ocorre em meio ao agravamento dos indicadores nacionais. De acordo com o Mapa Nacional da Violência de Gênero, mantido pelo Observatório da Mulher contra a Violência (OMV) do Senado Federal, pelo Instituto Natura e pela organização Gênero e Número, cerca de 3,7 milhões de mulheres brasileiras sofreram um ou mais episódios de violência doméstica nos últimos 12 meses.
A pesquisa mostra ainda que 71% das mulheres foram agredidas na presença de outras pessoas, e em 70% desses casos havia crianças no ambiente, o que corresponde a 1,94 milhão de agressões testemunhadas por menores. Em 40% das situações com testemunhas, a vítima não recebeu ajuda.

Dados do Ministério da Justiça e Segurança Pública reforçam a gravidade do cenário: houve aumento de 26% no número de tentativas de feminicídio em 2024. Apenas entre janeiro e setembro de 2025, mais de 2,7 mil mulheres foram vítimas de tentativa de feminicídio, enquanto 1.075 foram assassinadas por motivo de gênero.
O Mapa Nacional registra ainda 33.999 vítimas de estupro apenas no primeiro semestre de 2025, indicando que a violência sexual permanece em níveis alarmantes no país.
No RS, de acordo com o Observatório de Feminicídios Lupa Feminista, de janeiro até 5 de dezembro o estado registrou 79 feminicídios, número que ultrapassa o registrado durante todo o ano de 2024, quando foram contabilizadas 72 mortes. Pelo levantamento do Observatório Estadual de Segurança Pública, até outubro foram 69. “O mais importante disso tudo é que a gente possa realmente ter políticas de prevenção à violência contra a mulher, porque é isso que vai, de fato, prevenir os feminicídios”, pontuou a psicóloga e integrante do Observatório de Feminicídios Lupa Feminista, Thais Siqueira.

“Ampliação das vozes”
Na avaliação da jornalista e integrante do Levante Feminista contra o Feminicídio, Lesbocídio e Transfeminicídio, Télia Negrão, os atos convocados em todo o país representam uma “ampliação das vozes” diante da escalada da violência contra as mulheres no Brasil. Ela lembra que o Levante tenta, há quatro anos, alertar a sociedade para a gravidade do problema e destaca que, embora os feminicídios sempre tenham existido, o país só recentemente passou a contabilizá-los de forma mais precisa. “Hoje sabemos que, das quase 4 mil mortes violentas de mulheres no país, cerca de 1.500 são feminicídios íntimos”, afirma.

Mesmo assim, Negrão ressalta que os dados seguem subdimensionados, já que crimes motivados por menosprezo, como os que atingem mulheres em situação de trabalho precário ou que vivem em periferias marcadas pela violência, continuam fora das estatísticas. Para ela, reconhecer essas mortes como feminicídio é essencial para dimensionar o real tamanho da violência. “É uma grave violação de direitos humanos, um problema de Estado e de saúde pública que pode ser prevenido. O feminicídio está vinculado a padrões culturais, e cultura se muda.”
A ativista lembra que as mobilizações fazem parte de uma longa trajetória de luta. “Desde 1978, quando o assassinato de Ângela Diniz nos levou a gritar ‘quem ama não mata’, foram necessários muitos anos até chegarmos a um levante nacional como este”, afirma. Para a jornalista, o momento exige continuidade: “Precisamos colocar muita força para que esse movimento se fortaleça como ação permanente”.

Festival MEL e mobilização: organização e urgência
A diretora do Instituto E Se Fosse Você e coordenadora do plantão de Apoio Colmeia, Franciele Rodrigues, afirmou que o ato já vinha sendo planejado há meses como parte da programação do Festival Mulheres em Lutas. A explosão recente de feminicídios no estado, no entanto, tornou a mobilização ainda mais urgente.
“A gente está fazendo um ato hoje em defesa da vida das mulheres e contra os feminicídios. Já vínhamos há muito tempo pensando em colocar esse debate como centralidade no Festival Mulheres em Lutas (MEL). Essa semana tivemos vários feminicídios brutais, o que tornou ainda mais necessária uma mobilização conjunta”, disse.

Rodrigues apontou que o instituto conduz uma pesquisa específica sobre violência política de gênero. “Nossa pesquisa trata dos dados de mulheres que estão sofrendo processos de cassação arbitrários e perseguição contra seus mandatos. Esse relatório vem para nos ajudar publicamente a entender onde o Estado falhou e que seja responsabilizado, que deveriam defender a vida das mulheres”, concluiu.

A presidenta do Conselho Estadual dos Direitos das Mulheres, Fabiane Dutra, afirmou estar emocionada com a força do movimento. “O Mulheres em Lutas é o movimento mais legal que eu já vi surgir em 25 anos de militância feminista. Esse ato nacional começa por aqui, e é um basta das mulheres: queremos todas vivas. Essa pauta unifica todo o movimento. Chega de ódio nas redes, na vida. Chega”, declarou.
Dutra também criticou o atual cenário da Secretaria Estadual de Políticas para as Mulheres. “É devastador. Lutamos dez anos por uma secretaria de políticas para as mulheres e o que estamos vendo vai contra tudo o que queríamos ter conquistado. Não precisamos de retrocessos no Rio Grande do Sul”, afirmou.

Direitos humanos e políticas públicas
Representando o Conselho Estadual de Direitos Humanos pelo Fórum Justiça, Fernanda Carlan destacou que o encontro do Mulheres em Lutas, realizado nos últimos dois dias, debateu temas como justiça reprodutiva, maternidade, autonomia dos corpos e políticas públicas para assegurar a vida das mulheres. “Esses feminicídios fizeram com que todas nós estivéssemos na rua. Chamamos mais mulheres a compor esse espaço e fortalecer a necessidade de políticas públicas que nos mantenham vivas”, disse.
Carlan ressaltou que a violência exige respostas imediatas. “É uma epidemia, uma escalada. Esse ato denuncia, mas também cobra responsabilização. Estamos cansadas de denunciar. Queremos prevenção, conscientização e políticas públicas. Estamos na rua porque mulheres estão morrendo, e queremos que isso cesse”, afirmou.
Arte e denúncia: a força simbólica da Casa MEL

Integrante do Bloco das Pretas, Taís Goes (Preta Is) ressaltou o caráter histórico do encontro. “É de suma importância pra nós, enquanto mulheres pretas, ver todas as mulheridades reunidas em prol da vida de outras mulheres. Isso está sendo histórico na cidade de Porto Alegre. O nível de feminicídios que nós temos é inaceitável”, afirmou.
Para ela, ter um espaço voltado ao acolhimento, à escuta e à reflexão coletiva é fundamental. “É muito importante pensar a mulheridade, trazer outras pessoas para refletir sobre a importância das mulheres terem vida digna, estarem onde querem estar, amar quem desejam amar”, disse. Preta Is destacou ainda que a mobilização integra um ato nacional. “É lindo que tenha começado na cidade de Porto Alegre. Nós, mulheres gaúchas, sabemos o quanto sofremos com o machismo dentro dessa cultura que nos cria como prendas, e não como mulheres.”
Violência cotidiana e performance artística
A atuadora Tânia Farias, que integrou a programação artística da Casa MEL, reforçou a urgência da mobilização nacional prevista para este domingo, dia 7 de dezembro. “Infelizmente, é extremamente necessário. Talvez como em poucos momentos, a gente tenha tantos motivos para estar na rua. Se a gente pensar que pode perder dez mulheres num único dia, não tem como ficar parada, não tem como ficar calada”, afirmou.

Farias organizou a performance apresentada durante o evento e lembrou o impacto do manifesto encenado na noite anterior, no centro da capital. “Foi histórico pra mim fazer, na praça dos Três Poderes, o Manifesto de uma Mulher do Teatro falando profundamente sobre a minha experiência de violência e evocando a memória de Maria Glória (Magó), estuprada e assassinada aos 26 anos. Fiz isso diante de uma plateia majoritariamente de mulheres que passaram o dia inteiro produzindo pensamento e reflexão para mudar essa cultura que tem nos violentado cotidianamente.”
Ela também chamou atenção para a violência digital, que cresce em ritmo acelerado. “É um grande estímulo à violência direta contra as mulheres e o fermento da misoginia. Como todo mundo consome internet, o espaço digital acaba sendo muito poderoso para alimentar o ódio contra nós e contra nossos corpos.”
Sobre a manifestação realizada em Porto Alegre, que se soma ao ato nacional do dia 7, Farias destacou a simbologia dos sapatos levados para a escadaria do Palácio Piratini. “Nomear as pessoas é muito importante. Quando deixamos de existir… não somos números, embora os números sejam fundamentais para entender a dimensão da violência. Nós somos complexas, profundas, temos laços afetivos, produção poética.”

Segundo a atuadora, os sapatos funcionam como símbolo de ausência e memória. “O sapato é sempre o sapato de alguém. E nesse momento, de alguma mulher que não está. Trazê-los para a rua faz com que as ausentes estejam presentes. E fizemos algo muito bonito: plantamos esses sapatos como sementes. Que essas mulheres brotem, vivam em nós, e que essa árvore frondosa seja a árvore que vai terminar com o feminicídio.”

O ato em Porto Alegre teve a presença de movimentos feministas, sindicais, parlamentares, mulheres e homens de várias idades, e participações como da vereadora carioca Mônica Benício e da filósofa Márcia Tiburi. A mobilização nacional segue neste domingo (7), com atos em diversas cidades do país. E na quinta-feira (11), a Comissão Externa de Feminicídios da Câmara dos Deputados, criada em resposta ao grande número de casos no Rio Grande do Sul, divulgará o relatório final com o diagnóstico da situação no estado.
Homens também chamados à responsabilidade
Uma caminhada organizada pelo deputado estadual Adão Pretto Filho (PT) e o presidente da Companhia Nacional de Abastecimento (Conab), Edegar Pretto, também mobilizou cerca de 100 pessoas na manhã deste sábado (6) no Parque da Redenção, em Porto Alegre, em defesa do fim da violência contra as mulheres.
A atividade marcou o Dia Nacional de Mobilização dos Homens pelo Fim da Violência Contra a Mulher, celebrado em 6 de dezembro, e teve como foco a conscientização e o diálogo direto com a população.
O coordenador da Frente Parlamentar de Homens pelo Fim da Violência Contra a Mulher, o deputado estadual Adão Pretto Filho, destacou que o enfrentamento à violência exige o engajamento ativo dos homens. “Não basta dizer que somos contra a violência. É preciso agir, falar sobre o tema, orientar e assumir responsabilidade. Os homens têm um papel fundamental na mudança dessa realidade, e essa caminhada é parte desse compromisso coletivo”, afirmou.

O articulador nacional do movimento HeForShe, da ONU Mulheres, Edegar Pretto, destacou que a responsabilidade dos homens é central no enfrentamento ao problema. “É com os homens que nós precisamos conversar. O machismo, o feminicídio, a violência contra as mulheres é praticada pelos homens. Infelizmente a maioria faz de conta que não é com eles: não participa, não opina e não muda. E a sociedade segue sendo injusta para as mulheres”, declarou.
Pretto afirmou que o objetivo da mobilização foi convocar homens a assumirem seu papel no combate à violência. “Chamamos homens conscientes a aderirem à causa e dizer: chega de violência contra as mulheres”.
A mobilização integrou uma série de ações desenvolvidas pela Frente Parlamentar de Homens pelo Fim da Violência Contra a Mulher e entidades parceiras, com o objetivo de ampliar o debate público, fortalecer políticas de proteção e incentivar os homens a assumirem um compromisso ativo no combate à violência de gênero.
Veja onde serão os atos neste domingo (7):
Brasília (DF): 10h, Feira da Torre de TV
São Paulo (SP): 14h, vão do Masp
Rio de Janeiro (RJ): 12h, Posto 5 – Copacabana
Curitiba (PR): 10h, Praça João Cândido – Largo da Ordem
Cuiabá (MT): 14h, Praça Santos Dumond
Campo Grande (MS): 13h, em frente ao Aquário do Pantanal
Manaus (AM): 17h, Largo São Sebastião
Parnaíba (PI): 16h, em frente ao Parnaíba Shopping
Belo Horizonte (MG): 11h, Praça Raul Soares
Porto Alegre (RS): 17h, Praça da Matriz
São José dos Campos (SP): 15h, Largo São Benedito
Salvador (BA): 10h, Barra (do Cristo ao Farol)
São Luís (MA): 9h, Praça da Igreja do Carmos (Feirinha)
Belém (PA): 8h, Boulevard Gastronomia
Teresina (PI): 17h, Praça Pedro II
Roraima (RR) – 16:30h, Assembleia Legislativa
Mais informações no Instagram do Levante Mulheres Vivas
