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Barreira mais profunda é quando as mulheres sequer percebem que tem direito de sonhar, afirma professora

by admin

Viajar para o exterior está distante da realidade de grande parte das mulheres brasileiras, mas não apenas pela situação econômica. Para muitas, sonhar é um verbo que sequer chega a ser conjugado, segundo Juliana Kaiser, professora no IAG da PUC-RIo e doutoranda em Gênero e Sexualidade na University College London (UCL).

O diagnóstico é parte de uma reflexão sobre desigualdade de gênero e raça, que afeta de maneira decisiva a trajetória de mulheres negras e periféricas no Brasil. “Essa pergunta, ‘o que você sonha para a sua vida?’, simplesmente não nos é feita. Nem na infância, nem na juventude”, diz. Mulheres e pessoas negras são sub-representadas em espaços de decisão, de universidades de elite ao Parlamento. Para muitas, a ausência de referências produz um impacto simbólico profundo. “Se eu não vejo alguém como eu lá, é porque esse lugar não é para mim”, exemplifica a doutoranda. “A barreira mais profunda acontece quando a pessoa sequer percebe que tem direito a sonhar”.

O estudo “Os Sonhos Delas”, desenvolvido pela ONG Think Olga e obtido pela Fórum, trouxe a público no início do ano uma pesquisa subjetiva sobre as questões de gênero e suas intersecções no Brasil. Da infância à fase adulta, a pesquisa mostra que ao crescer o exercício de sonhar e também viver uma vida segura, livre e com oportunidade de carreira após os 18 anos se torna cada vez mais difícil para 7 em cada 10 brasileiras. Pelo menos 46% delas destacam que a discriminação afeta a realização em suas vidas.

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A conquista do doutorado veio após uma trajetória difícil. Juliana passou por uma cirurgia grave, ficou um mês sem andar e precisou de apoio intenso de fisioterapia, preparação física e acompanhamento psicológico. Sua formação exigiu não apenas estudo, mas resistência física e emocional para enfrentar o processo de candidatura. Por mais de dois anos, ela se dedicou a aperfeiçoar a apresentação de um projeto em inglês e a buscar pesquisadores no Reino Unido dispostos a receber sua investigação sobre gênero e desigualdade social no Brasil, que também a atravessaram.

Créditos: Juliana Kaiser/Arquivo Pessoal

Estimulada pelos pais, buscou a independência financeira. Estudou História da Arte, enfrentou situações de exclusão e decidiu derrubar fronteiras. Aos 19 anos, viajou sozinha pela Europa por três meses e, desde então, percorreu mais de 40 países, levando durante uma década seus alunos, majoritariamente mulheres, para conhecerem arte em diferentes culturas. 

“Percebi uma coisa muito dura: aquele mundo não parecia ser para mim. Não porque eu não fosse capaz, mas porque eu não tinha referências, não tinha repertório, não tinha tido acesso. Ainda assim, como a boa obsessiva que sempre fui, anotei todos os nomes dos lugares mencionados. Tranquei minha matrícula e fui passar três meses na Europa para ver tudo aquilo com os meus próprios olhos. Essa viagem foi absolutamente determinante. Ali eu entendi que o mundo também podia ser meu. Entendi que o que me distanciava daquelas pessoas, meus professores, colegas que vinham de outras realidades, gente que já tinha viajado e morado fora, não era falta de desejo ou de capacidade, mas sim o fato de que eles vinham de contextos em que viajar era incentivado, valorizado e possível. Eles tinham recursos, tinham apoio, tinham referências. Eu não.”

A pesquisa na UCL nasceu dessa inquietação: como mulheres que vivem em favelas enfrentam atravessamentos que combinam racismo e desigualdade de gênero, incluindo relacionamentos abusivos, a validação masculina, o abandono escolar e o peso do trabalho de cuidado não remunerado? Segundo a FGV IBRE, só o trabalho do cuidado representa 8,5% do PIB, enquanto a maioria dessas mulheres permancem em situação de vulnerabilidade e dúvidas sobre o seu próprio futuro.

A pesquisadora lembra que sua primeira experiência fora do Brasil marcou um ponto de virada. “Perceber isso mexeu profundamente comigo. Foi quando compreendi que viver experiências internacionais é um valor social, cultural e até profissional. E que, se eu quisesse me posicionar de forma estratégica no mundo, eu precisaria me expor a essas vivências também. Não por modismo, mas porque isso amplia os horizontes e coloca a gente em outro patamar de visão de mundo.”

Quando uma mulher abre caminho, abre para todas as outras

A descoberta, diz ela, abriu portas que nunca havia imaginado. “O mais interessante é que eu gostei — gostei muito. Tanto que essa acabou sendo apenas a primeira de muitas experiências. Hoje, estou voltando para morar na Inglaterra pela quarta vez, agora por cinco anos, para o doutorado.”

As vivências só se tornam possíveis quando o contexto familiar oferece condições para que o sonho exista. “Eu acredito que o ambiente realmente nos transforma. Quando você vem de uma família ou de um contexto em que existe a possibilidade do sonho, a ideia de romper barreiras, de explorar outros lugares e perspectivas, a vida se abre de outro jeito. Quando não existe urgência financeira, quando não há o medo constante de faltar, as oportunidades de crescer na carreira e no mundo se tornam mais acessíveis”, disse.

A partir da sua trajetória, a doutoranda, junto à planejadora financeira Luciana Ikedo lançou, em outubro, a primeira edição do projeto Conexões pelo Mundo, iniciativa que leva um grupo de brasileiras a Londres para uma imersão voltada a carreira, finanças e autoconhecimento. Além de percorrer bairros prestigiados da capital britânica, como Notting Hill, Westminster, Wimbledon, Covent Garden e o Palácio de Buckingha, as participantes têm acesso a palestras sobre educação financeira e a práticas de mapeamento comportamental. Ao fim da viagem, cada integrante produzirá um relato que integrará um livro coletivo.

“Queremos que cada participante volte com a sensação de que o mundo é seu também, que existe lugar, voz e espaço para ela em qualquer lugar que escolher estar”, afirma. ““Quando uma mulher avança em sua trajetória profissional, ela puxa consigo uma rede de outras mulheres que passam a acreditar que também é possível”.

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