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Brasil celebra redução da pobreza, mas ainda é um dos países mais desiguais da América Latina

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No dia 14 de dezembro de 2001, o Congresso Nacional promulgou a Emenda Constitucional 31, que criou o Fundo de Combate e Erradicação da Pobreza. Mais tarde, em 2003, no primeiro ano do primeiro mandato do presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT), foi aprovada a lei que instituiu a data como o Dia Nacional de Combate à Pobreza. 

De lá para cá, o país avançou na redução da pobreza por meio de políticas sociais de inclusão e transferência de renda. Em 2014, durante o mandato da ex-presidenta Dilma Rousseff e após mais de uma década de governos progressistas, a Organização das Nações Unidas para a Alimentação e Agricultura (FAO) declarou que, pela primeira vez na história, o Brasil havia reduzido a pobreza de tal forma, que deixava de figurar no relatório da organização sobre a fome no mundo, conhecido como Mapa da Fome. 

No entanto, a descontinuidade dessas políticas a partir do golpe em 2016 e, sobretudo, da eleição de Jair Bolsonaro (PL) em 2018, fez o país retornar à estatística dos países que mantêm parte significativa de sua população famélica. Em 2022, mais de 33 milhões de brasileiros se encontravam nessa condição. 

Com a volta do Partido dos Trabalhadores (PT) ao governo em 2023, diversas políticas de segurança alimentar, transferência de renda e inclusão foram retomadas e, em 2025, o Brasil voltou a sair do Mapa da Fome. 

A secretária extraordinária de Combate à Pobreza e à Fome do Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome (MDS), Valéria Burity, destaca que, diante das políticas de austeridade fiscal e do desmonte das políticas sociais e de promoção social levado adiante entre 2016 e 2022, o atual governo conseguiu, em muito pouco tempo, alcançar números relevantes na redução da pobreza nos últimos três anos.

“No acumulado de 2023 e 2024, a gente estima que foram aproximadamente 17,5 milhões de pessoas que superaram a pobreza e mais cerca de 5 milhões deixaram a situação de extrema pobreza”, ressalta Burity. “A gente atingiu o nível de pobreza extrema mais baixo no ano passado, que foi de 3,5%. Se não fosse esses programas sociais, a gente chegaria em 10%”, compara.

Além da retomada do sistema de proteção social, como o Bolsa Família, a valorização real do salário-mínimo e a ampliação do Benefício de Prestação Continuada (BPC), a secretária do MDS destaca uma série de outras medidas adotadas pelo atual governo, que ajudaram a reduzir a pobreza anos últimos anos, entre as quais, “uma política econômica que gera crescimento com emprego e redução de desigualdade”, a criação do Sistema Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional, e a aprovação da reforma tributária que incorpora alguns critérios de progressividade no sistema fiscal brasileiro.

Retrato da pobreza no Brasil

A saída do Mapa da Fome não significa que o fenômeno tenha deixado de ser parte da realidade dos brasileiros.

Segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), entre 2023 e 2024, 8,6 milhões de pessoas saíram da pobreza no Brasil. Em termos percentuais, 31,6% da população se encontravam nessa condição em 2022, caindo para 27,3% em 2023, e reduzindo novamente para 23,1% em 2024, o menor da série histórica iniciada em 2012.

Em números absolutos, o contingente de pessoas vivendo na pobreza era de 66,5 milhões de pessoas em 2022, passando para 57,6 milhões em 2023 e chegando a 48,95 milhões de pessoas em 2024.

Também entre 2023 e 2024, 1,9 milhão de pessoas deixaram a condição de extrema pobreza. A proporção da população nessa situação atingia 5,9% da população, ou 12,3 milhões de brasileiros, em 2022. Esse número caiu para  4,4%, ou 9,3 milhões, em 2023, e 3,5%, ou 7,35 milhões de pessoas, em 2024.

Proporcionalmente, de acordo com os dados do IBGE, a pobreza atinge mais as mulheres (24%) do que os homens (22,2%). Se agregado o fator racial, os índices de pobreza e extrema pobreza chegaram a 4,5% e 30,4%, respectivamente, entre as mulheres pretas ou pardas. Já entre os homens brancos os percentuais foram de 2,2% e 14,7%.

Ainda segundo o IBGE, em 2024 as pessoas pretas e pardas, juntas, representavam 56,8% do total da população, e 71,3% das pessoas que vivem abaixo da linha da pobreza no país. Entre as pessoas pretas, 25,8% estavam nessa condição e, entre as pardas, 29,8%. Já entre as pessoas brancas, o percentual pobre era de 15,1%. Finalmente, o instituto contabilizou 3,9% das pessoas de cor ou raça preta e 4,5% das pardas entre extremamente, contra 2,2% entre brancos.

Evolução da série histórica da pobreza e pobreza extrema no Brasil, de 2012 a 2024. | Crédito: IBGE

Redução das desigualdades

Se bem é certo que as políticas de inclusão e transferência de renda modificaram a perspectiva de vida de milhões de brasileiros, o chamado “andar de cima” se viu pouco afetado e um problema segue persistente: a diferença entre os mais ricos e os mais pobres. 

Atualmente, no Brasil, cerca de 70% dos cidadãos vivem com apenas dois salários mínimos, o equivalente a R$ 3.036. Enquanto isso, o país registrou, neste ano, 56 bilionários, segundo a lista nacional da revista Forbes

Recentemente, o ministro da Fazenda, Fernando Haddad, comemorou o fato de que o Brasil teve “a maior redução da desigualdade da história”, segundo o Índice de Gini, mecanismo usado internacionalmente para medir a desigualdade na distribuição de renda ou riqueza em uma população.

Quanto mais próximo de 0, maior igualdade tem o país. O Brasil passou de 0,517 em 2023, para 0,506 em 2024.

“A desigualdade no Brasil é um impedimento do desenvolvimento. Não existe desenvolvimento com esse nível de desigualdade. Nós estamos com o melhor índice de Gini da nossa história recente”, declarou o ministro, durante cerimônia de sanção presidencial da lei que zerou o Imposto de Renda (IR) para trabalhadores com renda de até R$ 5 mil. 

Evolução do Índice de Gini Brasileiro, de 2012 a 2024.
Evolução do Índice de Gini Brasileiro, de 2012 a 2024. | Crédito: IBGE

Por outro lado, a redução das desigualdades ainda está longe de fazer com que o país deixe de ser um dos mais desiguais do mundo. Segundo o Índice de Gini, a América Latina é a região com maiores níveis de desigualdade, e o Brasil tem um dos piores números.

Como a consolidação do índice depende de dados fornecidos pelos governos locais, sua atualização varia de acordo ao recebimento dessas informações. Considerando apenas os países que tiveram suas atualizações entre 2022 e 2024, o Brasil é o penúltimo no ranking da igualdade entre os latino-americanos, ficando à frente apenas da Colômbia. 

Índice de Gini, considerando apenas os países cujos dados foram atualizados entre 2022 e 2024. Fonte: Banco Mundial

  • República Dominicana – 0,390 (2024)
  • Suriname – 0,392 (2022)
  • El Salvador – 0,398 (2023)
  • Uruguai – 0,400 (2024)
  • Peru – 0,401 (2024)
  • Bolívia – 0,421 (2023)
  • Argentina – 0,424 (2024)
  • Chile – 0,430 (2022)
  • México – 0,435 (2022)
  • Paraguai – 0,442 (2024)
  • Equador – 0,452 (2024)
  • Honduras – 0,457 (2024)
  • Costa Rica – 0,458 (2024)
  • Panamá – 0,497 (2024)
  • Brasil – 0,506 (2024)
  • Colômbia – 0,539 (2023)

“Nós fomos sempre historicamente campeões de desigualdade. Necessariamente você diminuir os índices de pobreza não significa que você está atuando também e fazendo cair os índices de desigualdade”, alerta o cientista social Alan Carvalho.

“Esses fenômenos interligados. Você consegue ter uma economia que tem índices bastante positivos. Você tem o Brasil saindo do Mapa da Fome, você tem o Brasil combatendo e diminuindo a pobreza e a extrema pobreza. Mas, ao mesmo tempo, as raízes mais profundas dessa desigualdade não são alteradas, ainda não são possíveis de serem mexidas”, aponta o sociólogo.

Causas históricas

Alan Carvalho aponta como o cerne da desigualdade social no Brasil a opção por um modelo de desenvolvimento econômico baseado na acumulação entre uns poucos, e na exploração da grande maioria. 

“A gente tem um sistema de governança que é o capitalismo, que é produtor e disseminador da desigualdade, da miséria, da pobreza e da fome. Isso está intrínseco à sua própria lógica, não dá para fugir. Você tem processo de escravidão, que é uma escravidão que até hoje não pagou a dívida histórica, social, política e econômica com os descendentes da população negra que foi arrancada da sua pátria, da sua terra, e veio para cá para produzir toda a riqueza do Brasil à base da chibata”, explica.

Vinculado a isso, o sociólogo destaca o caráter rentista da economia brasileira, altamente dependente das economias centrais do capitalismo, e que onera os cofres públicos para o pagamento da dívida pública, em detrimento de estratégias concretas que ajudem a superar as raízes históricas da desigualdade. 

“O sequestro do Banco Central para um Banco Central ‘autônomo’ dominado pelos papas do mercado financeiro. Se você olhar a série de diretores do Banco Central, a maioria esmagadora vem do mercado financeiro e alimenta essa lógica rentista. O gasto do recurso público, de toda a arrecadação de 2,2 trilhões, a grande esmagadora massa vai para esse pagamento, para essa ciranda de juros da dívida. Então, tudo isso contribui para que esse alcance dessas políticas públicas seja reduzido”, analisa.

A questão agrária

Uma das consequências mais imediatas e dolorosas da pobreza é a fome, caracterizada pelo geógrafo Josué de Castro como o grande “dilema brasileiro: pão ou aço”. 

A referência do mais importante escritor sobre o tema no Brasil, remete às escolhas políticas que determinaram, portanto, historicamente, a geografia da fome no país. 

Entre essas determinantes, a questão agrária emerge como uma das mais importantes, pelo alto grau de concentração de terras, em um país cuja economia está baseada na produção agrícola. Isso explica porque em 2023, enquanto 33 milhões de brasileiros passavam fome, o agronegócio brasileiro registrou recorde nas exportações e um crescimento até então inédito de 16,3% no Produto Interno Bruto (PIB) do setor. 

Ceres Hadich, da direção nacional do Movimento dos Trabalhadores Sem Terra (MST), considera que as políticas dos governos petistas que promoveram a saída do país do Mapa da Fome revelam uma posição “sensível” ao tema da fome, no entanto, destaca que são insuficientes. 

“Hoje a gente está fora do Mapa da Fome, amanhã a gente pode voltar porque, porque esse conceito da segurança alimentar é bastante limitado e frágil, pois ter o acesso à comida, e não necessariamente a uma alimentação de qualidade, não é o suficiente”, destaca a dirigente.

“Soberania alimentar diz respeito a mais do que comer, é comer direito, é saber de onde vem essa comida, quem produziu, quem plantou, quais foram as relações de trabalho estabelecidas aí, quais são as relações ecológicas também estabelecidas aí”, aponta Hadich.

MST organiza os trabalhadores rurais sem terra há mais de 40 anos em defesa da reforma agrária no Brasil.
MST organiza os trabalhadores rurais sem terra há mais de 40 anos em defesa da reforma agrária no Brasil. | Crédito: Luara Dal Chiavon/MST

Por outro lado, a dirigente sem terra destaca que o fenômeno crônico da fome no país está relacionado à estrutura social agrária no Brasil.

“A gente vive sobre uma estrutura agrária extremamente arcaica, concentradora, de uma lógica monopolista, espoliadora, e está dirigida à agroexportação”, pontua. “A terra é o sinônimo da riqueza, da concentração de poder, da concentração de renda. Ela é o meio de produção dessa riqueza dos poderosos, sobretudo em um país agrário, em desenvolvimento, como o Brasil. Então, falar em reforma agrária no Brasil é olhar para essas relações de poder”, avalia Hadich. 

“Portanto”, segue a dirigente, “pensar a reconstrução dessa lógica, pensar soberania alimentar, da perspectiva da questão agrária, é fundamental. Mas sempre partindo desse ponto de partida: é uma questão política, é a expressão da luta de classes no Brasil, é uma questão de justiça histórica, justiça social, que precisa ser feita no nosso país, mas que ainda não foi feita”, conclui.

Políticas em debate

Além da necessária e inconclusa reforma agrária no Brasil, no debate público atual, uma série de medidas vêm sendo discutidas, que podem ajudar a reduzir a brecha social no país. 

Entre elas, Burity destaca a reforma do Imposto de Renda, com a aprovação da isenção de pagamento para trabalhadores que recebem até R$ 5 mil, e o desconto progressivo para os que ganham entre R$ 5001 e R$ 7350.

“Quando você garante renda, você garante acesso a um conjunto de outros benefícios, de um conjunto de serviços, que é importante para uma vida com dignidade num país como o nosso”, destaca a secretária do MDS.

Alan Carvalho concorda que a medida terá efeito importante sobre a redução da desigualdade, mas lembra que a renda dos trabalhadores brasileiros está defasada, segundo o Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos (Dieese).

“Se a gente avaliar que o salário mínimo, só do ponto de vista da cesta básica, teria que ser cinco vezes maior”, lembra o sociólogo, considerando ainda a realidade do trabalho no Brasil.

“Qual é o nível de exploração salarial que nós chegamos? Se a gente olhar para o fenômeno da plataformização do trabalho, precarização da precarização com consequente impacto na renda, se a gente considerar que 40% da população economicamente ativa está na economia informal, ainda há muito o que fazer”, avalia. 

Por outro lado, Carvalho considera que outra medida que está no debate público e que terá impacto importante sobre a vida dos trabalhadores brasileiros é a redução da jornada de trabalho sem redução do salário. 

“A jornada 6 por 1 está muito além, na minha visão, de meramente propiciar uma carga de trabalho mais humana, o que também é muito importante. Mas trata-se de melhor a vida social familiar, o convívio familiar que deveria ser um direito intrínseco, inegociável do cidadão, das pessoas, das próprias famílias. Além disso, eu entendo que ela também vai conseguir incorporar uma massa maior de desempregados no mercado de trabalho e com isso também, de novo, contribuir para que a renda possa, de modo geral, aumentar”, analisa Carvalho.

Perenizar direitos

“Para destruir é sempre mais rápido”, alerta Carvalho, que considera fundamental o investimento em educação e, sobretudo, em participação social, para evitar a descontinuidade das políticas que ajudam a reduzir a pobreza no país. 

“A gente precisa garantir uma normatização de um sistema único de participação e controle social, incorporando fóruns, conselhos e conferências para que o olho do dono volte a engordar o gado. A democracia representativa, com esse processo de manipulação da opinião pública, de fake news, agravado pela supremacia das big techs, tem se afastado cada vez mais dos anseios da população, e sobretudo, dos mais vulnerabilizados, gerado ódio, preconceito e tudo mais”, avalia Carvalho.

“Precisamos retomar ao trabalhador a sua própria consciência de classe. Porque se ele não se enxerga como classe trabalhadora, como o único bem que ele tem para vender é a sua mão de obra. Como ele vai poder incorporar essa leitura de mundo, que vai possibilitar a ele se engajar e lutar com mais consciência pelos seus direitos?”, questiona. 

“Os espaços de controle social cumprem um papel fundamental nesse sentido de aprofundar a consciência e a sensibilidade cidadãs. Onde o cidadão, quando conhece, tem a oportunidade de participar desses espaços, percebe que ele pode sim, em alguma medida, influir na qualidade dessas políticas públicas”, complementa o cientista social.

Na mesma linha, Burity considera que a vacina para evitar a desconstrução das políticas sociais a partir de eventuais mudanças na correlação de forças políticas é o fortalecimento da democracia. 

“A gente está num período onde esse debate está super acirrado e é importante a gente entender que a democracia é um projeto importante para garantia de direito. Sempre que há um projeto de retirada de direitos, a democracia também se enfraquece. Então é isso, garantir espaços democráticos, garantir políticas públicas com orçamento público para essas políticas públicas”, defende a secretária.

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