A participação das Forças Armadas na política nacional gerou uma série de desdobramentos negativos para o Exército brasileiro e seus integrantes com processos judiciais, perdas de patente, prisão e condenação de comandantes de alta patente pela primeira vez na história brasileira. Mas, em meio a essa crise política e de imagem, a Câmara dos Deputados aprovou o Projeto de Lei Complementar (PLP) 473 de 2017, que amplia e facilita a atuação do Exército na execução de obras, trazendo protagonismo político para a corporação, segundo fontes ouvidas pelo Brasil de Fato.
Para Cristiano Pavini, coordenador de projetos da Transparência Brasil, a lei acaba sendo um incentivo para que o Exército seja o primeiro a ser procurado para tocar as obras. De acordo com ele, o projeto não especifica quando o Exército vai ser contratado e traz critérios de maneira genérica.
“O projeto pode configurar um incentivo para banalizações de parcerias entre a administração pública e o Exército, sem que seja devidamente comprovado e observado o interesse público na economicidade e técnica da execução da obra”, afirmou ao Brasil de Fato.
Para integrantes do Planalto ouvidos pelo Brasil de Fato, esse impacto se dá especialmente em cidades menores, que dependem mais de obras de infraestrutura, o que pode trazer um “protagonismo político” das Forças Armadas, principalmente junto às prefeituras.
O PLP dispensa a licitação para contratação do Exército para obras consideradas “estratégicas” em prefeituras, governos estaduais e órgãos federais. O leque amplo envolve obras de infraestrutura rodoviária, ferroviária, metroviária e hidroviária, portos e aeroportos, geração e transmissão de energia. O projeto também dispensa a licitação para que a corporação realize obras que estão paralisadas, abandonadas ou com um ano e meio de atraso.
Diferentes setores da sociedade e até ex-militares indicam que um dos principais problemas para o texto é ampliar a legitimação política da corporação. Uma ala do governo entende que o PLP ajuda na imagem de “o Exército que faz” em um momento que as Forças Armadas deveriam ser questionadas sobre a postura que assumiram nos últimos anos, especialmente na tentativa de golpe de Estado.
Do outro lado, grupos ligados ao Palácio do Planalto viram esse projeto como um “agrado” do governo para os militares em um momento de crise institucional, em um movimento de condescendência do governo para “acalmar” os militares, já que as Forças Armadas criaram um dos principais momentos de tensão política das últimas décadas.
O coronel da reserva do Exército e professor de Tecnologia Logística do Instituto Federal do Rio Grande do Sul, Heraldo Makrakis, questiona a necessidade desse tipo de projeto de lei na atual configuração e concorda com a tese de que o governo pode tentando ajudar a melhorar a imagem da corporação. O militar, no entanto, reforça a importância de que o Exército mantenha uma atuação na área da engenharia.
“O maior portfólio de obras do Brasil é do Exército. Esse não é um desvio de finalidade do Exército como defende até uma ala dos militares. É importante fazer obra inclusive porque é uma forma de treinar para executar. A dispensa de licitação pode criar essa possibilidade de manter uma estrutura logística, mas não é fundamental”, disse ao Brasil de Fato.
Mudança de postura do governo
Durante a discussão do PLP, o governo mudou a postura ao longo do tempo e acabou apoiando o projeto e votando a favor do texto na Câmara na última semana. O texto de autoria do ex-deputado Gonzaga Patriota (PE) foi apresentado em 2021 e passou por diversas mudanças e debates nas comissões antes de ser aprovado por ampla maioria: 427 votos a favor e só 18 contrários, na quarta-feira (26).
No início das discussões, o deputado Padre João (PT-MG) votou contra o PLP na Comissão de Finanças e Tributação. Ele alegava que o projeto abria margem para corrupção no Exército, já que determinava que a dispensa da licitação deveria ser para obras de mais de R$ 150 milhões ou obras paradas de, ao menos, R$ 15 milhões.
De acordo com integrantes do Departamento de Engenharia e Construção (DEC) do Exército ouvidos pelo Brasil de Fato, a corporação já tem um procedimento para dar transparência aos processos, o que, mesmo, sem licitação, garante que as obras não terão um custo muito acima do estabelecido previamente.
O governo votou favorável ao texto depois de excluir esses valores no projeto final. Uma das articuladoras da votação na Câmara foi a deputada Erika Kokay (PT-DF). Ela entende que o Exército já pode assumir obras públicas e que o projeto não muda o papel das Forças Armadas nesse tipo de operação.
“Tinha uma discussão de que isso só seria feito com obras que tivessem a intervenção direta do exército. Fizemos uma modificação para que o exército contrate uma outra empresa para fazer uma determinada obra. Ele faz a licitação daquela empresa, mas aquela empresa não precisa ser licitada pelo poder federal. Essa situação é uma emergência que se tem numa instituição do Estado, que é uma instituição que tem expertise para poder levar adiante essas obras”, afirmou.
A corrupção, no entanto, não é um ponto problematizado por esses grupos. De acordo com os congressistas da base do governo, o Exército tem mecanismos para controlar desvios de recursos e evitar que o dinheiro destinado para as obras não sejam usados com essa finalidade.
Makrakis entende que a corrupção é algo difícil de prever mesmo com uma licitação bem amarrada. O departamento de engenharia do Exército já consegue estimar quanto vai gastar, mas a sobrevalorização é algo que está intrínseco aos projetos de engenharia.
“Existe a possibilidade de sobrevalorização da obra. Falta de previsibilidade e dos aditivos. O sobrepreço pode acontecer também porque existe a dificuldade de que os batalhões sejam cobrados pelo Exército. É possível sim, mas é possível em todas as obras, inclusive com empreiteiras privadas. Quem fez uma obra em casa sabe que é difícil calcular de maneira precisa prazos e valores”, afirmou.
Exército: uma empresa de construção?
O projeto também pode estimular as Forças Armadas a participarem de obras e se tornarem uma espécie de “empresa de construção brasileira”.
As Forças Armadas já têm divisões internas que são responsáveis por realizarem obras no país por diferentes motivos. A estrutura para a engenharia está sob o guarda-chuva do DEC. Na hierarquia militar, abaixo deste órgão estão a Diretoria de Material de Engenharia (DME), a Diretoria de Obras Militares (DOM) e a Diretoria de Obras de Cooperação (DOC).
Toda essa estrutura é responsável por planejar e executar obras no país, especialmente para finalidade militares e em situações de exceção, como eventos climáticos extremos. Mas o Exército já participa de licitações para realizar obras de infraestrutura.
Essa função divide o próprio Exército. Uma ala do militarismo entende que não é de responsabilidade dos militares realizar obras que não têm relação direta com as necessidades das Forças. Outro grupo, encabeçado pelos engenheiros do Exército, acha que essa função já é consagrada e ajuda a dar legitimidade para as Forças e a treinar para executar obras em contextos como as enchentes do Rio Grande do Sul de 2024.
Outra crítica apresentada é em relação ao custo das obras. O PLP não coloca critérios sobre como definir a transparência de cada projeto. Renato Morgado é gerente de programas da Transparência Internacional e entende que há uma falta de especificações no projeto que comprometem a transparência das obras.
“O PL traz um conjunto de critérios muito vagos, pouco claros. Fala sobre projetos estratégicos, algo que é muito aberto. E, o principal o PL não traz nenhuma obrigação em relação a transparência, já que deixa nenhum critério para isso. O projeto detalha em quais condições essa parceria poderia acontecer, mas não traz condições claras”, disse.
Ainda que as obras já tenham um planejamento definido, tanto em prazos, quanto em valores, o projeto não garante que o Exército será escolhido também como uma forma de deixar o empreendimento com o melhor custo-benefício.
A falta de rigor para escolher a melhor “técnica” para as obras também é questionado pelos especialistas. Pavini indica que não está claro como isso será definido em obras que não têm prazos curtos para a execução.
“É compreensível com obras que são para grandes eventos ou quando a empreiteira teve problemas graves na execução. É inquestionável a capacidade do Exército nesse sentido. Mas essa escolha não pode ser feita sem estabelecer critérios como: quem tem a melhor técnica para executar”, afirmou.
Obras do Exército
Os militares foram responsáveis pela execução de diversas obras de infraestrutura no país: portos, aeroportos, estradas, ferrovias e hidrovias são os principais exemplos. O Exército brasileiro é autorizado a realizar obras em território nacional desde 1880, a partir da lei 2.991, de 21 de setembro de 1880, promulgada por Dom Pedro 2º. Na ocasião, o foco eram setores estratégicos: ferrovias e linhas telegráficas.
Desde então, o Exército foi responsável por obras de manutenção e ampliação de alguns equipamentos como o aeroporto de Caxias do Sul e a duplicação da BR-116 no Rio Grande do Sul.
Alguns portos também foram construídos pelo Exército no país, especialmente de portos fluviais na Amazônia, como o porto de São Gabriel da Cachoeira (AM). As Forças Armadas também foram responsáveis pela construção de pontes e viadutos em lugares estratégicos.
