Está ficando cada vez mais óbvio. A candidatura do senador Flávio Bolsonaro, do PL do Rio de Janeiro, à Presidência, anunciada na sexta-feira, 5, e relativizada pelo próprio senador 48 horas depois, é uma manobra de Jair Bolsonaro para reorganizar seu campo político.
Com apenas 8% dos eleitores dizendo que o primogênito deveria ser o candidato apoiado pelo pai, segundo o Datafolha, Flávio não aparece como nome competitivo nem dentro da base bolsonarista. Mas, então, o que está por trás da jogada da família Bolsonaro?
A declaração de que pode desistir “por um preço” expôs o caráter instrumental da candidatura de Flávio. Desde então, análises vêm se avolumando, e a edição de hoje de Cartas Marcadas reúne as que considera mais pertinentes — não por especulação, mas por apontarem movimentos reais da extrema direita.
Há uma leitura cada vez mais compartilhada por analistas e políticos: Flávio é apenas a fumaça. Quem pode incendiar a eleição tem nome, força e base própria: Michelle Bolsonaro, a vice-presidente ideal em uma hipotética candidatura de Tarcísio de Freitas. Vamos pensar juntos?
O plano Michelle
Entre as várias análises que pipocaram nos últimos dias, a do historiador Odilon Caldeira Neto, especialista em extrema direita, vale atenção. Ele aponta que a disputa relevante neste momento não é pela cabeça de chapa, mas pela vice-presidência numa possível candidatura do governador paulista Tarcísio de Freitas, do Republicanos.
A análise é plausível e tem circulado em Brasília. De acordo com ela, a luta da família Bolsonaro, agora, é para garantir o próprio sobrenome na chapa presidencial, em uma candidatura à vice. Isso forçaria que Tarcísio mantivesse vivo o compromisso de, caso eleito, atuar para tirar Bolsonaro da cadeia.
A agenda anunciada pelo próprio senador reforça essa ideia: Flávio não disse que vai rodar o Brasil ou convocar comícios. Disse que pretende se reunir com os presidentes do União Brasil (Antonio Rueda), Progressistas (Ciro Nogueira) e PL (Valdemar Costa Neto).
Os integrantes do Centrão ouvidos pela imprensa indicaram que União Brasil, PP, Republicanos e PSD tenderiam a não embarcar na candidatura de Flávio, cogitando inclusive a neutralidade.
O mercado financeiro, por isso, reagiu mal à novidade. No dia do anúncio, o Ibovespa registrou a maior queda diária desde fevereiro de 2021, recuando 4,31%, enquanto o dólar teve a maior alta desde outubro, subindo 2,3% e chegando a R$ 5,43.
Os porta-vozes do mercado nos ajudam a entender essa reação: o economista Yihao Lin, da Genial Investimentos, afirmou a clientes que a reação negativa se explica pela percepção de que ele concentra a rejeição do pai sem construir uma alternativa viável. Ou seja, em portugês claro: Flávio perderia de Lula.
Mas, após a desastrosa coletiva de Flávio no domingo, 6, muita gente começa a perceber que o movimento de Jair produz outro efeito: colocar o primogênito na posição de fiador das negociações da família na corrida eleitoral. E com uma possibilidade evidente: a de que ele retire a própria candidatura, indicando Michelle como vice de Tarcísio.
O resultado de mais uma rodada da pesquisa Datafolha, divulgada horas depois do anúncio da candidatura, dá sentido à manobra. Segundo os dados, apenas 8% dos brasileiros acham que Jair deveria apoiar Flávio; 22% preferem Michelle, 20% citam Tarcísio.
É justamente nesse ponto que entram as leituras de Odilon Caldeira Neto e do antropólogo Orlando Calheiros, que deslocam o foco da discussão de Flávio para Michelle. Odilon destaca que Michelle é a figura mais forte para ocupar o espaço simbólico e eleitoral deixado por Jair, com vantagem em segmentos-chave como evangélicos e mulheres.
Orlando Calheiros insiste que é um erro subestimar Michelle sob o argumento de que “a direita nunca aceitaria ser liderada por uma mulher”. Ele lembra que lideranças femininas de extrema direita já se consolidaram em países tão ou mais machistas que o Brasil, citando Itália e Japão, e concorda que Michelle é hoje “o nome mais perigoso”.
Segundo ele, a rede que ela vem construindo desafia inclusive os limites das igrejas evangélicas, com articulação própria, viagens constantes e atuação que, em muitos momentos, lhe deu mais visibilidade do que o próprio marido nesse meio.
Orlando recorda também que Michelle foi uma das principais articuladoras da indicação e aprovação de André Mendonça ao STF e que, com Jair preso, deixou de apenas operar em favor dos aliados do ex-presidente para apoiar candidaturas mais alinhadas à sua própria agenda — inclusive quando essas escolhas contrariam interesses do PL e de membros da família, como nos casos do Ceará e de Santa Catarina.
Para o antropólogo, Michelle está montando um grupo de candidatas e quadros conservadores que tenta romper a rejeição do bolsonarismo entre mulheres, apropriando-se de conceitos como “empoderamento” em chave moralista, fenômeno já descrito por pesquisas acadêmicas sobre mulheres de extrema direita.
Outro ponto pertinente é uma comparação feita por Odilon Caldeira Neto com a renovação da extrema direita francesa. Assim como Marine Le Pen reformulou o discurso e a estética do antigo Front National para torná-lo mais palatável, sem abandonar o núcleo duro da agenda, Michelle tem condições de redesenhar a imagem do bolsonarismo.
A ex-primeira-dama apresenta um rosto menos associado ao golpismo e à militarização dos últimos anos, dialogando com eleitores que rejeitam Jair, mas mantém a mesma base religiosa e autoritária.
Nesse quadro, a candidatura de Flávio cumpre função delimitada: manter o sobrenome Bolsonaro no centro da pauta e pressionar Tarcísio e Valdemar pela defesa da anistia.
Nada indica que Jair acredite de fato na viabilidade do filho como candidato capaz de derrotar Lula. Pelo contrário: tudo aponta para essa operação de cobertura, em que o primogênito faz o papel de escudo enquanto o grupo decide onde e como ancorar o futuro do bolsonarismo.
E, nesse futuro que está sendo redesenhado, o nome que realmente cresce, com base própria, articulação e ambição, é Michelle.
