A economista italiana Clara Mattei, autora do livro A ordem do capital: como economistas inventaram a austeridade e abriram caminho para o fascismo, argumenta que a austeridade não é meramente uma política de controle dos gastos públicos, mas um mecanismo estruturante do capitalismo e de contenção das demandas das classes trabalhadoras.
Em entrevista ao Brasil de Fato, a professora do Departamento de Economia da The New School for Social Research, afirma que as políticas austeras deslocam os “gastos do público para os agentes privados, de modo a proteger continuamente os lucros desse grupo”. Para isso, as decisões econômicas são transferidas para os chamados tecnocratas, especialmente bancos centrais independentes, “blindados do escrutínio público”.
Em suas palavras, esse modelo serviu para conter avanços sociais e neutralizar o poder de trabalhadores tanto na Grã-Bretanha e na Itália do século 20 quanto no Brasil contemporâneo. Para Mattei, a atual crise da democracia é, justamente, um sintoma do sucesso da austeridade em enfraquecer sindicatos, fragmentar solidariedades e abrir espaço para governos autoritários que aprofundam políticas pró-mercado.
Segundo Mattei, cortes em serviços sociais, juros altos e sistemas tributários regressivos funcionam como “protetoras do capitalismo” e disciplinam trabalhadores, ampliam a competição por empregos e fortalecem os detentores de capital financeiro.
Nesse sentido, a economista afirma que “o ponto é que o capitalismo não é compatível com uma democracia substantiva. Pode-se simular uma democracia, mas, na prática, o capitalismo funciona melhor quando a população é afastada de decisões econômicas e aceita a exploração como fundamento da ordem social”.
Por isso, a economista defende que apenas a organização popular e a democratização radical das decisões econômicas podem enfrentar o poder de investidores privados e reorientar políticas públicas para as necessidades sociais. “Não podemos deixar decisões econômicas nas mãos dos especialistas, porque estes sempre respeitarão a lógica do lucro e da austeridade”, acrescenta.
Confira a entrevista na íntegra
Brasil de Fato – A introdução do seu livro destaca que a austeridade não é um fenômeno novo e há muito tempo constitui um pilar do capitalismo moderno. Poderia explicar de que maneira a austeridade, em sua visão, atua como uma “protetora do capitalismo”?
Clara Mattei – A austeridade funciona para proteger os dois pilares centrais que compõem o nosso sistema econômico, chamado capitalismo. O primeiro é o trabalho assalariado, ou seja, o fato de que as pessoas não têm alternativa senão trabalhar para outra pessoa e receber um salário inferior ao valor que produzem. A austeridade não protege o trabalho assalariado de diversas maneiras. Quando falamos de austeridade fiscal, trata-se do corte de recursos sociais, o que torna as pessoas mais dependentes do mercado. Isso significa que elas precisam comprar serviços que, de outro modo, poderiam receber enquanto cidadãs. Assim, são compelidas a trabalhar mais para ter acesso a esses serviços.
O mesmo vale para a tributação regressiva. O fato de trabalhadores serem mais tributados que o capital significa que eles são pressionados a trabalhar para obter o dinheiro necessário ao pagamento de impostos. O mesmo ocorre com a austeridade monetária. Quando as taxas de juros sobem, torna-se mais difícil encontrar emprego, pois o desemprego aumenta [com os juros mais altos, fica mais caro para as empresas tomarem empréstimos, investirem, ampliarem operações ou contratarem pessoal]. E quando trabalhadores passam a competir entre si por vagas, ficam mais disciplinados a aceitar sua condição de trabalhadores explorados.
Há ainda o segundo pilar, que é o domínio privado sobre o investimento, ou seja, a proteção da austeridade sobre os meios de produção. A austeridade diz respeito, sobretudo, a incentivar e reduzir riscos para investidores privados. Isso porque a austeridade monetária também serve aos detentores privados de capital financeiro, pois estes recebem mais ao emprestar dinheiro com as taxas de juros altas. Ou seja, credores e instituições financeiras enriquecem enquanto governos locais se empobrecem.
Portanto, austeridade não significa gastar menos, mas sim deslocar gastos do público para os agentes privados, de modo a proteger continuamente os lucros desse grupo.
O livro argumenta que a austeridade é uma “reação antidemocrática a ameaças de mudança social vinda de baixo”. Poderia explicar como essa natureza antidemocrática se manifestou na Grã-Bretanha e na Itália após a Primeira Guerra Mundial, e como ela se manifesta hoje no Brasil e em outras partes do mundo? Quais são as diferenças?
O caráter antidemocrático da austeridade é muito bem-sucedido porque se alinha com a lógica tecnocrática, segundo a qual políticas econômicas devem permanecer nas mãos de poucos “especialistas”. Após a Primeira Guerra Mundial, houve uma delegação extraordinária de poder à economia neoclássica, algo que hoje está ainda mais institucionalizado.
Um exemplo é a independência dos bancos centrais, fundamental para permitir que a austeridade monetária atuasse com êxito na contenção das demandas trabalhistas. Esse modelo foi central nos anos 1920 na Grã-Bretanha e exportado para países como Brasil e Argentina. Até hoje permanece como pilar da austeridade. Isso significa que decisões monetárias não são tratadas como assunto de domínio público e estão imunes ao escrutínio democrático. Os bancos centrais operam pela máxima “nunca explicar, nunca lamentar, nunca pedir desculpas”. Isso mostra como a austeridade serve à lógica do lucro, e não à lógica da necessidade.
É importante enfatizar que a austeridade não é irracional. Ela é perfeitamente racional para a economia capitalista, pois a protege. Mas é irracional para as pessoas. Se coubesse às populações decidir como gastar recursos públicos ou definir políticas monetárias, elas não apoiariam a austeridade. Por isso, torna-se necessário realizá-la à revelia da vontade popular, isolando instituições econômicas do controle democrático. Então existem bancos centrais independentes, departamentos do Tesouro blindados do debate político, entre outros mecanismos.
Se não tivéssemos um Banco Central independente do governo, quais medidas poderiam ser tomadas a fim de frear a austeridade?
Os bancos centrais sabem muito bem que decisões monetárias afetam o mercado de trabalho. Quando os juros estão baixos e a economia é estimulada, os trabalhadores tendem a aumentar seu poder de barganha. Isso poderia beneficiá-los. Porém, figuras como Janet Yellen [economista e ex-presidente do Federal Reserve dos Estados Unidos] já afirmaram claramente que juros baixos só são possíveis quando os sindicatos estão enfraquecidos. Em outras palavras: só se pode estimular a economia com juros baixos quando os trabalhadores já foram enfraquecidos por outros meios, entre eles, a austeridade.
O que estou tentando dizer é que bancos centrais basicamente tornam o dinheiro mais ou menos caro e, geralmente, quando o dinheiro fica mais barato, a economia pode chegar a níveis mais altos de emprego, o que costuma ser bom para os trabalhadores. Então, o momento em que você pode fazer isso é, geralmente, quando você consegue enfraquecer os trabalhadores de outras maneiras.
No livro, mostro como a austeridade envolve a tríade de políticas, monetária, fiscal e industrial, e o arcabouço teórico que as legitima. A economia neoclássica afirma que o valor não provém do trabalho, que a “classe produtiva” é o investidor. Isso justifica incentivar investidores e disciplinar trabalhadores. Essas ideias e políticas foram extremamente eficazes em manter grande parte da classe trabalhadora em posição de fraqueza.
Hoje, vemos trabalhadores precarizados, frustrados e desamparados votando em governos de extrema direita que aprofundam a austeridade. E mesmo governos supostamente progressistas fazem o mesmo, o que só acelera a atração por líderes autoritários como Milei [Argentina], Orbán [Hungria] ou Modi [Índia], políticos que prometem algo diferente, mas são, na prática, grandes perpetuadores da austeridade.
Podemos dizer que a crise da democracia hoje revela o sucesso das políticas de austeridade em desestruturar o poder dos trabalhadores.
Sim. O livro tenta ser provocativo ao mostrar que a proteção do capitalismo, o seu “fio condutor”, é o que fascismo e liberalismo do pós-Primeira Guerra Mundial têm em comum, algo que permanece até hoje. E acho que isso ocorreu de duas formas. No Reino Unido, o Tesouro e o banco central elevaram os juros, cortaram gastos sociais, desregularam e privatizaram, neutralizando demandas por transformações sociais que emergiram no pós-guerra. Na Itália, isso ocorreu por meio de políticas abertamente violentas. O Estado proibiu sindicatos e greves e reprimiu salários pela lei. Mas, apesar dos métodos distintos, os resultados foram semelhantes.
No livro, eu mostro também como Mussolini precisou do apoio da elite liberal internacional para consolidar sua ditadura. Essa elite deixou claro que apoiaria assassinatos e torturas desde que a propriedade privada e o trabalho assalariado fossem protegidos. O governador do Banco da Inglaterra, Montagu Norman, chegou a dizer, em carta a J. P. Morgan, que Mussolini era “o homem certo para o momento crítico”.
Isso nos ensina que precisamos examinar as alianças com mais profundidade e ter coragem de pensar sistemas econômicos alternativos, nos quais não sejamos permanentemente subordinados aos interesses de investidores privados, nacionais ou internacionais.
O ponto é que o capitalismo não é compatível com uma democracia substantiva. Pode-se simular uma democracia, mas, na prática, o capitalismo funciona melhor quando a população é afastada de decisões econômicas e aceita a exploração como fundamento da ordem social.
Então o Estado de bem-estar social na Europa na segunda metade do século passado foi uma exceção à regra?
O Estado de bem-estar europeu só existiu graças à intensa pressão sindical. Hoje, a austeridade desmonta essas instituições. Países como Itália e Reino Unido vivem um cenário em que as populações têm enorme dificuldade de arcar com despesas básicas, saúde e serviços antes garantidos pelo Estado e agora privatizados. As taxas de pobreza disparam. Na Itália, um quarto das famílias está em risco de pobreza e marginalização social, em grande parte porque o sistema desmantela continuamente os serviços públicos.
Você argumenta que a “tecnocracia” é central para a proteção do capitalismo moderno. Como os economistas da época, como Ralph Hawtrey na Grã-Bretanha e Maffeo Pantaleoni na Itália, construíram a narrativa da economia como uma ciência “apolítica” e “neutra” para justificar políticas de austeridade?
A manutenção disso envolve o convencimento das pessoas de que apenas certos agentes especializados são capazes de lidar com questões macroeconômicas. Cria-se uma autoridade do “especialista” para que as pessoas aceitem passivamente políticas que as prejudicam. No livro, mostro como isso não ocorreu espontaneamente, mas exigiu grande esforço das elites para eliminar movimentos que democratizavam o conhecimento econômico e afirmavam que o saber vinha dos próprios trabalhadores, pois eram eles que efetivamente operavam a produção.
Algumas experiências de autogestão revelavam que trabalhadores conheciam melhor que seus patrões o funcionamento das fábricas. Essa possibilidade de democratizar o conhecimento precisava ser destruída. O sistema universitário e as elites governantes se empenharam em bloquear qualquer democratização da economia como ciência, algo que continua até hoje. A figura do “especialista técnico apolítico” é uma ficção, porque a sua atuação é profundamente política, pois implica fazer trabalhadores sofrerem. O livro busca revelar essas ficções, que têm sido altamente sedutoras.
Recentemente, durante uma palestra na Universidade de São Paulo, a senhora comentou que o genocídio na Faixa de Gaza é, atualmente, um dos melhores exemplos do caráter violento do capitalismo. Pode falar um pouco melhor sobre isso?
A discussão também se conecta ao silêncio diante de atrocidades contemporâneas, como o genocídio no Sudão ou o massacre na Palestina. Esse silêncio evidencia o quanto o projeto de austeridade teve êxito em afastar as pessoas do que realmente importa. Ele também revela o caráter violento do sistema econômico, que depende da eliminação de vidas inocentes para sustentar a lógica do lucro. É necessário tornar isso evidente. Não vivemos em um sistema espontâneo, mas em uma economia violenta, baseada no sacrifício dos mais vulneráveis.
A Palestina funciona como uma lente de aumento das verdades fundamentais sobre o capitalismo: a exploração colateral, violência e apoio incondicional aos acionistas que lucram com essa ordem.
Há muitas camadas de cumplicidade que vão da venda de petróleo a Israel, inclusive pelo governo brasileiro, ao fato de que o militarismo é uma das formas mais eficazes de impulsionar economias nacionais. Militarismo e capitalismo estão completamente imbricados, e ambos se articulam com a lógica da austeridade. São duas faces da mesma moeda. A necessidade contínua de reprimir, matar e tomar recursos integra o funcionamento de um sistema que não é sustentável.
O que é experimentado sobre os palestinos demonstra que qualquer pessoa pode ser submetida à mesma brutalidade. Vemos a normalização da suspensão do direito internacional e da ordem liberal. O objetivo final é matar por lucro, e isso mostra que ninguém está imune, nem os europeus que “viram o rosto”. Podemos enfrentar condições semelhantes se não agirmos rapidamente.
A senhora falou sobre o que os bancos centrais poderiam fazer na contramão de políticas austeras. E o que a sociedade pode fazer?
Não podemos deixar decisões econômicas nas mãos dos especialistas, porque estes sempre respeitarão a lógica do lucro e da austeridade. É necessário organizar-se para reduzir a dependência de mercado, algo que no Brasil já encontra muitos exemplos, do MST aos movimentos por moradia, que mostram que é possível organizar produção e serviços com base na partilha e na democracia interna, ao mesmo tempo pressionando governos a operar pela lógica da necessidade, não do lucro. Isso só ocorrerá mediante pressão vinda de baixo.
Precisamos reconhecer que a economia não é um espaço democrático e que precisamos transformá-la pela raiz se quisermos sobreviver à catástrofe climática e aos genocídios produzidos por este sistema. Devemos nos auto-organizar e, simultaneamente, pressionar os governos a agir de forma diferente. Aqui em Tulsa [em Oklahoma, nos Estados Unidos], por exemplo, temos o Free Forum for Real Economic Emancipation, que trabalha nessa direção e produz muito conteúdo online que pode inspirar movimentos no Brasil, assim como somos inspirados por eles.
