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“Deus é a verdadeira realidade”, em um livro as homilias inéditas de Bento XVI

by admin

Reproduzimos o texto integral de uma reflexão de Joseph Ratzinger, proferida em 14 de julho de 2013 no Mosteiro Mater Ecclesiae e jamais divulgada publicamente, presente no novo volume da LEV, disponível a partir desta quinta-feira nas livrarias. O livro, que reúne 82 pregações feitas tanto durante o ministério petrino quanto após a renúncia, foi apresentado na tarde de 11 de dezembro no Vaticano por dom Georg Gänswein, padre Federico Lombardi, padre Fabio Rosini, Lorenzo Fazzini e Silvia Guidi

BENTO XVI

Caros amigos,

este Evangelho do samaritano toca sempre novamente o nosso coração. A atualidade dramática desta parábola ficou visível na visita do Papa a Lampedusa. Vimos, vemos o número crescente de vítimas da violência em todas as partes do mundo e, por outro lado, como disse o Papa: “A anestesia do coração… a globalização da indiferença”. O que está acontecendo?

São João, no capítulo 18 do Apocalipse, fala-nos do colapso de uma grande civilização, que é preanunciado para a cidade de Roma, e mostra como essa civilização também criou um sistema de comércio e enumera muitas coisas que são compradas e vendidas nesse comércio. No final, diz que esses mercadores eram também mercadores de pessoas e de almas humanas (cf. Ap 18,13). Almas humanas, pessoas humanas tinham se tornado mercadoria e, assim, no final, essa civilização entra em colapso, porque não é mais cultura, mas anticultura.

É exatamente isso que acontece com o homem, com a pessoa, quando a alma humana se torna mercadoria. Pensemos nos traficantes que prometem às pessoas do Corno de África levá-las para os paraísos terrestres do Ocidente. Eles não se importam com o destino dessas pessoas, elas podem até se afogar no mar, eles só se importam com o dinheiro, para eles as pessoas são mercadorias que lhes trazem dinheiro. O mesmo acontece em muitas outras situações; pensemos naquelas pessoas na Romênia que vendem meninas prometendo bons empregos no Ocidente, mas na realidade as vendem para a prostituição. O homem é considerado mercadoria e nada mais. Pensemos no drama da droga, pessoas que não veem mais sentido na vida, não veem mais beleza; têm desejo do belo e do bom, mas caem na rede desses traficantes de droga, nos falsos paraísos que destroem. Mais uma vez, o homem é apenas mercadoria que se usa para ganhar dinheiro; assim como tantas outras vítimas da violência na África, as crianças-soldados, tudo isso… Vemos como o homem realmente caiu nas mãos dos ladrões e espera pelo samaritano que o salve.

Neste ponto, surgem duas perguntas. A primeira é: como é possível, como se explica esse fenômeno em uma civilização tão rica e desenvolvida como a nossa? Mas a mais importante surge em consequência: o que devo fazer? No final, não devemos fazer uma consideração geral; no final, a questão do Evangelho é a mesma do resto da lei: o que devo fazer? Mas primeiro queremos entender um pouco por que é assim, para poder compreender melhor também nossa missão, nossas possibilidades, nossa tarefa.

A era moderna nasceu com dois grandes ideais, que são os motivos de sua trajetória: progresso e liberdade. Foi dito: agora não deixamos mais o mundo apenas nas mãos de Deus, não esperamos mais apenas o além; nós assumimos a condução, o leme da história, nós mesmos a guiamos no caminho do progresso. Na realidade, o progresso existe, todos sabemos disso. Se eu comparar o mundo da minha infância, da minha juventude, com o de hoje, há uma diferença imensa; não parece ser o mesmo mundo. E vemos como, apenas nos últimos trinta anos, um progresso acelerado mudou o mundo: no mundo da comunicação, agora é possível fazer coisas incríveis, inimagináveis cinquenta anos atrás; na medicina, na tecnica sobre a vida humana, etc., há progresso, o homem tem possibilidades que antes eram impensáveis. Mas surge a pergunta: é verdadeiro progresso?

Há também progressos reais. Se pensarmos que hoje existem instituições internacionais que procuram prevenir e evitar conflitos, curar, proteger os doentes; se vemos como cresceu a sensibilidade para com os deficientes, os doentes, os excluídos, o respeito pelas outras nações, pelas outras raças, temos de dizer que estes são progressos não só do nosso poder, mas também progressos da alma, progressos da humanidade, do humanismo, do respeito pelo outro. E me parece que podemos dizer, sem falsa ideologia, que esses progressos resultam da presença da luz do Evangelho no mundo, porque essa luz nos fez ver o fraco, o sofredor, o outro como homem, como filho de Deus, como amado por Deus, como meu irmão.

Essa visão do homem, que nasceu do Evangelho, se estendeu além das fronteiras do cristianismo, tornou-se propriedade da humanidade. Compreende-se que realmente somos todos irmãos, também os pobres são nossos, também aqueles de outra raça, de outra religião são membros da mesma família. Devemos nos empenhar para prevenir a violência, para quebrar a cadeia do mal, para ajudar. Sem dúvida, há progressos. Mas também devemos dizer que, no entanto, o progresso permanece muito ambíguo, aliás, há até mesmo um retrocesso da humanidade. Justamente se considerarmos Lampedusa e todas as coisas das quais falamos, vemos como o poder do homem, todas as possibilidades que ele tem, também podem ter o poder da destruição. Se o homem começa a produzir a si mesmo, a fabricar o homem e a considerá-lo como mercadoria, como algo de que se pode servir, todo esse progresso se torna um instrumento de autodestruição; não é mais progresso, mas ameaça. O poder do progresso só pode servir se a luz do Evangelho for mais forte do que todas essas tentações do homem, e só assim as coisas não nos destruirão, mas construirão a humanidade.

Passemos à outra palavra: liberdade. Também aí há progressos reais, certamente na superação da escravidão, na igualdade entre homem e mulher, no respeito pelas crianças, e assim por diante. Mas também aí encontramos uma liberdade destrutiva; assim, vemos que o mundo da droga vive em nome da liberdade, mas coloca o homem na escravidão mais radical, mais destrutiva, que é a caricatura da liberdade. Essa liberdade que não é liberdade, mas dá liberdade apenas para mim, para que eu possa fazer o que quero, é uma liberdade que se torna uma escravidão antes impensável.

Mas o que fazer, o que posso fazer? O doutor da lei sabia a resposta, mas era uma resposta apenas teórica, uma questão acadêmica, para discutir: “Quem é, afinal, o próximo?”. Ele não sai do mundo intelectual, acadêmico; sobretudo, até mesmo a maneira como ele coloca a questão é egoísta: “O que devo fazer para ter a salvação?”, ele olha principalmente para a sua salvação pessoal. O samaritano é totalmente diferente. Não sabemos se ele conhecia as palavras do Deuteronômio, mas o Evangelho diz que “teve compaixão”, e a expressão grega é muito mais radical: “Suas vísceras foram tocadas”, ou seja, ele foi comovido profundamente, de modo que precisava fazer algo. Seu coração foi tocado, mas não só isso: ele sabia o que fazer, o que precisava fazer, porque o coração falava e mostrava o caminho.

Penso também numa palavra do profeta Ezequiel, onde Deus diz: «Eu tirarei o coração de pedra e vos darei um coração de carne» (Ez 36,26). Este é o ponto: o “coração de pedra”, que todos nós temos desde o pecado original, que têm aqueles que usam a miséria dos homens para ganhar dinheiro, o coração de pedra nos impede de compreender o quanto podemos e devemos fazer; precisamos de um “coração de carne”, que nos mostre o caminho. Lembro-me também de um texto do profeta Oséias, onde Deus fala de si mesmo. Deus vê todos os pecados de Israel, incríveis, vê que, segundo a justiça, deveria destruir este reino e diz: “Mas não o faço; meu coração se comove dentro de mim” (cf. Os 11,8).

O coração de Deus é assim, não pode destruir o seu homem, é assim que deve ajudá-lo, correr atrás dele; é assim que Ele sai de si mesmo, torna-se Ele mesmo homem para salvar a humanidade; Deus saiu de si mesmo, o seu coração obrigou-o a isso. Assim vemos que o verdadeiro samaritano da humanidade é Jesus Cristo, o Filho de Deus, que se pôs a caminho, vendo a miséria humana com um coração vulnerado, ferido por essa realidade. É Ele que nos dá óleo e vinho, os Sacramentos, a Palavra de Deus; é Ele que nos dá asilo, a Igreja; é Ele que nos guia, nos transforma, para que também o nosso coração seja semelhante ao seu.

Assim, vemos o que é essencial. Isso significa que só vivemos se o nosso coração se tornar semelhante ao coração de Jesus, ao coração divino. Este é o objetivo do Evangelho: que o verdadeiro samaritano, Cristo, nos conforme a si mesmo, transforme o nosso coração de pedra em coração de carne e, com o coração de carne, saibamos o que fazer. O mundo precisa da luz de Cristo, e somente se a luz de Cristo, a chama de seu amor, transformar o coração, cada um de nós saberá o que fazer e quando fazer. O simples fato de haver fé já transforma o mundo. A resposta que devemos dar, portanto, é descobrir Jesus, acreditar em Jesus, deixar-nos transformar em Jesus, para que nosso coração se torne coração de carne e nos diga o que fazer. A luz de Cristo é a resposta necessária.

Oremos ao Senhor para que transforme o nosso coração e nos ajude a encontrar o que devemos fazer em cada momento da nossa vida. Amém!

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