A relação entre o Brasil e os Estados Unidos esteve no centro do debate público em 2025, sobretudo no que se refere à soberania nacional brasileira e o enfrentamento à nova doutrina estadunidense para as relações internacionais. O posicionamento do país norte-americano remonta a estratégias da Guerra Fria, dividindo o mundo em zonas de influência, ou à corrida inter-imperialista do período prévio à Primeira Guerra Mundial, em afronta ao multilateralismo.
Na avaliação interna, um dos principais desafios da diplomacia brasileira no primeiro ano do segundo mandato de Donald Trump tem sido lidar com esse novo “olhar” dos estadunidenses sobre o hemisfério e uma ofensiva contra qualquer iniciativa de substituição do dólar como moeda hegemônica.
O analista internacional Bruno Rocha Lima explica por que a questão monetária é tão fundamental para a maior economia do capitalismo.
“A questão do dólar é fundamental. Quanto menos contratos forem fechados em dólar, menor é o poder dos Estados Unidos, menor a capacidade deles esticar a dívida pública, menor a capacidade deles financiarem setores estratégicos para projetar domínio no mundo, como, por exemplo, o setor da tecnologia ou garantir supremacia militar. Então, qualquer contrato fora do eixo do dólar para os Estados Unidos é um ataque direto à sua capacidade de exercer poder”, diz.
A economista Juliane Furno avalia que a questão monetária é mais uma dimensão da crise pela qual passa o imperialismo estadunidense.
“Há um movimento de crise, de decadência do império americano, que se expressa também em termos monetários”, avalia a economista que, por outro lado, descarta que exista uma ameaça real à hegemonia do dólar como principal moeda para transações comerciais e, principalmente, reservas.
“88% de todas as transações envolvem o dólar. Todas as transações cambiais envolvem o dólar em uma das pontas. E o dólar é a principal moeda de reserva das economias. Então, ainda que a China e a Rússia estejam se retirando muito timidamente da dívida pública americana, do Tesouro americano e indo, por exemplo, comprar ouro, a China tem trilhões de reserva em dólar, Brasil tem bilhões de reserva em dólar”, destaca a economista.
Furno não vê uma ruptura da hegemonia do dólar num médio prazo, no entanto, entende que há um “movimento de contestação” que dependerá da vontade política e da capacidade de resistência das alternativas que surgirem frente ao dólar. Por outro lado, destaca que o poderio estadunidense está sendo contestado não apenas no plano monetário.
“Eu acho que Donald Trump identifica que os Estados Unidos estão sendo ameaçados em várias frentes simultâneas. Se fosse só o dólar, acho que a preocupação seria um pouco menor, mas há várias frentes. Há, por exemplo, uma ameaça no campo militar, com a possível vitória da Rússia na guerra da Ucrânia, que é uma guerra feita por procuração, no fim das contas. É uma guerra dos Estados Unidos que vai ter que ceder o avanço da Otan nos países da ex-União Soviética. Há uma contestação no plano econômico e tecnológico com a China em ascensão e já passando a economia americana, se a gente for medir em paridade do poder de compra. E há essas iniciativas de desdolarização”, avalia Furno.
Reindustrialização dos EUA e as consequências para o mundo
Juliane Furno destaca a diferença entre o processo de industrialização dos Estados Unidos, no século 19, e a tentativa atual de retomada das indústrias que deixaram o território estadunidense nos últimos anos. Por outro lado, sublinha que esse processo, que envolve a guerra tarifária deflagrada pelo presidente Donald Trump, tem consequências para o resto do mundo.
“Não sei se elas vão ter a mesma efetividade [que teve no século 19], mas a reindustrialização dos Estados Unidos com certeza é uma das principais formas de contornar a crise que passa a economia americana. E isso tem impacto. Os Estados Unidos vão se sentir mais poderosos, vão ampliar sua vantagem econômica e tecnológica, provavelmente com relação à China. Deve haver uma sociedade com maior coesão política. Esses são possíveis impactos, além de um processo de relocalização ou deslocalização da indústria que hoje está sobretudo no leste, no sudeste asiático, de volta para os Estados Unidos”, ressalta a economista.
Zonas de influência
Furno avalia que diante da crise, o governo de Donald Trump tem atuado em diversas frentes, que envolvem “concorrer e operar tarifas contra a China, manter um permanente esforço de guerra agora na América Latina” e fazer pressão para que alternativas de comércio em moedas locais não se desenvolvam.
“Há um esforço documentado dos Estados Unidos de retomar sua influência na América Latina. Acho que deve ser um movimento combinado entre coerção e consenso. Então, acho que vão usar mecanismos que envolvem inclusive a força militar. No caso da Venezuela, já estão utilizando”, afirma a economista, em referência às agressões e ameaças militares dos Estados Unidos contra a Venezuela, e a forte presença de forças estadunidenses no Caribe.
Sobre esse aspecto, Rocha Lima aponta que há diferentes níveis de influência definidos pela nova doutrina da política externa estadunidense.
“Os Estados Unidos definiram zona de influência direta, a América Latina, uma zona de tensão mundial, o sistema Pacífico, uma zona de influência secundária, o continente africano, e um aliado secundário, o mundo europeu ocidental. Definiu suas prioridades e vai atuar através de intermediários no Oriente Médio ou na Ásia Ocidental”, explica Rocha Lima.
O analista internacional considera que, diferente da ofensiva lançada pelos Estados Unidos durante a chamada Operação Condor, quando a diplomacia do país atuou para a mudança de regimes e instauração de ditaduras militares na América Latina, a direita tem ganhado espaço na região pelo voto popular.
“No período das ditaduras, os governos não eram legítimos, eram impostos. E agora, sob democracia liberal, em período de redes sociais e algoritmo, existe uma capacidade do império e dos seus aliados domésticos. Sem ele, não conseguiria nada, sem cada oligarquia local, parasita local etc., não conseguiria nada. Essa soma de neoimperialismo com neocolonialismo interno consegue, por um conjunto de fatores, mas sendo fator fundamental, a penetração de ideias conservadoras”, avalia.
Por outro lado, Rocha Lima critica a postura tímida do Brasil no papel de liderança regional para fazer frente à ofensiva estadunidense. “O Brasil devia estar buscando instrumentos de intervenção complementar, no bom sentido, na economia dos vizinhos. O Brasil tinha que ser o pioneiro na proposição do Banco do Sul, da retomada do Banco do Sul. O país tinha que ser líder em investimentos multilaterais a partir do banco que a presidenta Dilma [Rousseff] preside. Tem que ter instrumento de desenvolvimento econômico dentro da América do Sul, da América Latina”, pontua o analista internacional. “Na ausência de um instrumento de integração, a integração perde potência”, completa.
