Por Laura Scofield – Agência Pública
“A gente tem a sensação de que os nossos direitos são sempre utilizados como moedas de troca”. É assim que o advogado Ricardo Terena, que representa a Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib), descreve o conflito entre o Congresso Nacional e o Supremo Tribunal Federal (STF) nas decisões sobre o Marco Temporal. Nesta semana, o Senado aprovou a Proposta de Emenda à Constituição (PEC) do Marco Temporal, que altera a Constituição para incluir a tese que as terras indígenas só podem ser demarcadas se provadas sua ocupação por indígenas em 5 de outubro de 1988. A PEC agora será analisada pela Câmara.
Essa manobra do Senado aconteceu um dia antes do início do julgamento no Supremo sobre a constitucionalidade da Lei 14.701/2023, que colocou o Marco Temporal como critério na demarcação de terras indígenas. Em setembro de 2023, a tese do Marco já havia sido rejeitada pelo STF.
Em outubro de 2023, o presidente Lula vetou trechos da lei, como o que estabelecia o Marco, mas os parlamentares derrubaram os vetos dois meses depois. Depois, os partidos Liberal, Progressistas e Republicanos entraram no STF pedindo o reconhecimento da constitucionalidade da legislação, enquanto a Apib, a Rede, o PSOL, o PT, o PCdoB, o PV e o PDT ingressaram com ações que a contestam. Ao todo, quatro ações sobre o tema — três contrárias ao marco, uma favorável — serão analisadas pelo Supremo. Apesar da fase de sustentações orais já ter começado, ainda não há data definida para a votação.
“A gente tem a sensação de que os nossos direitos são sempre utilizados como moedas de troca”, explicou Ricardo Terena, que representa os indígenas via Apib no Supremo. O advogado considera que os indígenas estão no “cerne da disputa entre os poderes”.
“Quando a gente teve a Constituição, teve ali um prazo de cinco anos para se realizar a demarcação dos territórios, um prazo que nunca se cumpriu. Com o passar dos anos, cada vez mais a gente vê uma relativização dos nossos direitos com relação aos territórios”, afirmou. Ele considera que as “comunidades indígenas têm resistido a todos esses ataques” e lutado para tentar manter “o que existe na Constituição”, mas ressalta que os povos já têm sentido as consequências do Marco Temporal. “Os conflitos territoriais se intensificaram a partir dessa fragilização dos direitos indígenas”, explica.
Ricardo Terena destaca ainda a importância do protagonismo indígena na luta pela causa, evidenciado pela presença de advogados indígenas nas sustentações orais. “Ter a presença dos advogados indígenas é mais do que ter um advogado ali atuando, é trazer a vivência da realidade dos territórios para dentro do tribunal”, diz. “Somos beneficiários da causa e somos as pessoas que vão sofrer com as consequências deste julgamento”, conclui.
Julgamento do Marco Temporal não é só sobre Marco Temporal
Ao contrário do julgamento de setembro de 2023, a discussão agora em curso aborda o tema sob perspectiva mais ampla, já que a lei “traz outras questões além do marco temporal”, explica o advogado. A legislação modifica, por exemplo, detalhes sobre o processo de demarcação.
Dessa forma, Ricardo Terena explica que, ao longo do primeiro dia de sustentações orais, os representantes do agronegócio incluíram em seus argumentos defesas a outras medidas que “inviabilizam as demarcações dos territórios”. “Eles estão num olhar de debater o marco temporal, mas também outras questões, como a desapropriação por interesse social e outros aspectos relacionados ao procedimento administrativo de demarcação”, disse. O advogado cita que foram questionados, por exemplo, a validade do laudo antropológico como prova em si para a demarcação de terras indígenas.
Além de rebater os que consideram retrocessos nos procedimentos demarcatórios, o advogado conta que a Apib também utilizou o espaço para defender a necessidade de “redimensionamento do território indígena para a correção de erros” em processos demarcatórios passados, já que diversas terras indígenas seriam menores do que deveriam.
Ainda que esteja sendo contestado, o Marco Temporal já tem afetado territórios indígenas. Em 2023, a Pública revelou que a tese foi utilizada para anular a portaria que declarava um território indígena no oeste de Santa Catarina. Na área, de 3 mil hectares, deveriam viver os integrantes do povo Guarani de Araça’í, que seguiam reivindicando a terra, mas no momento estavam morando de “favor” com outro povo. O censo de 2022 revelou que as 336 pessoas que estavam vivendo na região não eram indígenas.
