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Do garrafão à adega: sommelier criado na Rocinha vendeu sacolé e foi garçom antes de ingressar no ramo dos vinhos

Nascido em Fortaleza e criado na Rocinha, sommelier Dionísio Chaves virou bicampeão brasileiro e agora assume a curadoria de vinhos do Guanabara

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Longe do Olimpo, Dionísio Chaves (@dionisiochavess) completou 52 anos na última terça-feira. Apesar de batizado com o nome do deus do vinho, ele sequer gostava de álcool. Depois de um porre com a bebida comprada num garrafão, muitas rolhas passaram por baixo dessa ponte até que ele se tornasse um premiado sommelier. Nascido em Fortaleza, sua vida foi construída em terras cariocas, para onde sua mãe, Rita Chaves, hoje com 75 anos, mudou-se com os três filhos quando Dionísio tinha apenas 2.

A maior lembrança do Ceará é que a casa ficava diante da linha de trem. A chegada ao Rio do atualmente morador da Barra da Tijuca contou com abrigo de parentes em Rio das Pedras durante dois meses, até que uma quitinete com apenas uma janela basculante fosse alugada pela mãe na Rocinha, comunidade em que viveu até os 20 anos.

Olfato e paladar aguçados

Trabalhando como faxineira, a mãe de Dionísio saía de casa e voltava muito tarde, sempre com os filhos dormindo. A responsabilidade sobre as crianças ficava com vizinhos, que algumas vezes por dia batiam na porta para saber se estava tudo bem — e com a irmã mais velha, na época com 6 anos.

— Vendo todo esse sufoco da minha mãe, comecei a pular a janela. Não para fazer bagunça, mas para tentar vender bala ou alguma coisa. Cheguei a subir nesses lixões para desmontar sofá, ajudar a carregar móveis até a casa das pessoas dentro da favela. Fui criando habilidades que a vida me obrigou a ter, mas minha mãe não sabia — lembra ele.

A aventura só foi descoberta quando Rita estranhou a geladeira cheia de iogurtes, comprados pelo filho. Ela precisou ser acalmada por vizinhos, que defenderam o pequeno Dionísio, confirmando que ficava na rua trabalhando. Mesmo com o esclarecimento, a mãe perguntou o que poderia fazer para que o filho sossegasse em casa quando ela não estivesse.

— “Sacolé, para eu vender” — respondeu o filho, apresentando uma solução que levaria clientes até Dionísio, e não o contrário.

Com a confiança da mãe conquistada, o passo seguinte foi vender picolés na praia, com cerca de 8 anos. Do calçadão, ela o observava, por medo de que o menino, que não sabia nadar, caísse no mar. Desses tempos, Dionísio lembra da vergonha quando encontrava a menina de que gostava. Mesmo assim, seguia, “porque precisava muito”. E sempre provando o que vendia, uma “herança” familiar que seria muito útil no futuro.

— Quando nasci, minha avó (Maria Tereza) já era cega. Foi perdendo a visão porque trabalhava numa fábrica de algodão (em ambiente insalubre). Tudo dela era sentir o aroma. Deus tira uma coisa e dá outra. Estudei muito, treinei muito, mas, nessa parte olfativa e gustativa, tem um certo dom — observa Dionísio.

Outra “herança” é o seu nome. A inspiração não vem da mitologia: o Dionísio homenageado foi o melhor amigo de dona Rita, homem descrito como carinhoso e que também não gostava de álcool, como boa parte da família.

— Minha mãe não entendia por que em toda matéria me chamavam de deus do vinho. Foi quando fui explicar quem era Dionísio, da mitologia grega, e ela começou a rir — diverte-se o sommelier.

Antes de entender de vinho, Dionísio tentou a vida como jogador de futebol, com atuações pelas categorias de base do Flamengo e do Nacional de Montevidéu. Após seis meses frustrados no Uruguai, a volta ao Rio ainda contou com uma passagem pelo Exército aos 18 anos, antes de começar a carreira como garçom.

Ele ajudava a mãe, que àquela altura havia aberto um bar onde vendia baião de dois, mocotó e sarapatel, cardápio que fazia sucesso na comunidade nordestina que mora na Rocinha. Entre seus clientes, havia funcionários do Guimas, restaurante badalado no shopping Fashion Mall, em São Conrado, que acabou sendo o novo emprego de Dionísio.

Aos 19, ganhou de um amigo um livrinho de vinhos da Associação Brasileira de Sommeliers (ABS). Ali aprendeu a maneira correta de como apresentar a bebida e como abrir a garrafa, por exemplo, o que chamou a atenção do dono do Guimas, Chico Mascarenhas, que questionou onde o funcionário havia aprendido aquilo.

— “Desculpa, fiz alguma coisa de errado?” — assustou-se Dionísio na ocasião.

Mas, na verdade, o patrão reconheceu o talento e ofereceu ao então garçom um curso de vinhos na Associação Brasileira de Proprietários de Restaurantes, com o renomado sommelier e enólogo Celio Alzer, que morreu em 2020. O passo seguinte foi disputar um concurso regional, com desempenho nota 10 na teoria e sofrível na parte prática, como degustação às cegas. Ele então decidiu estudar ainda mais, até dez horas por dia após o expediente, além de provar vinhos.

— Eu não gostava de vinho, porque a primeira bebida alcoólica que coloquei na boca foi uma taça de vinho de garrafão. E passei a noite inteira dando trabalho para minha mãe — lembra Dionísio, que passou a provar as sobras das garrafas dos clientes. — Até que um dia não errava mais nenhum vinho da carta do Guimas.

Prêmios na carreira

Já gostando de vinho, ele foi fazer estágio com o enólogo e sommelier Danio Braga, fundador da ABS, na Locanda della Mimosa, em Petrópolis.

— Ele demonstrava muita aptidão ao ofício, um serviço muito elegante e de boa presença, loquaz e eficiente — elogia Danio.

De lá para cá, Dionísio foi bicampeão brasileiro em disputas entre sommeliers (1999 e 2002), campeão da América do Sul (2004) e único classificado do país para os mundiais de 2000 e 2004. Na Grécia (2004), o melhor do mundo foi o italiano Enrico Bernardo, mas ele saiu de lá como o “mais charmoso” da competição. O currículo inclui ainda sociedade em cinco restaurantes e curadoria em adegas de supermercados.

— A evolução desse profissional está em conhecer os dois lados da moeda, vender e comprar, (além de) saber das necessidades dos empreendimentos de varejo — completa Danio sobre Dionísio.

Depois de fazer parte dos quadros do supermercado Zona Sul, ele foi anunciado no último dia 25 como o novo consultor de vinhos do Guanabara, durante um jantar no Hotel Fasano, em Ipanema.

Na nova função, treinou uma equipe de 52 pessoas que agora trabalham com o público. Quatro das 28 lojas têm atendimento exclusivo diário, enquanto outros profissionais se dividem para suprir a demanda em outras 14. Dionísio também circula entre as unidades, de surpresa.

A seleção feita por ele tem 300 rótulos de vinho e espumante, que vieram de países como Portugal, França, Chile e África do Sul. O próximo projeto é desenvolver um espumante brasileiro para ser vendido apenas no supermercado.

— A entrada de Dionísio vem para somar conhecimento técnico, sensibilidade apurada e paixão por esse universo — diz o diretor de marketing do supermercado, Albino Pinho.

Para Dionísio, essa é mais uma etapa em sua trajetória, que pode até ter glamour, mas é essencialmente “operária”.

— O sommelier tem que ser um garimpeiro. Degustar 200 vinhos e encontrar a joia: a de R$ 30, a de R$ 50. Quero encontrar o bom vinho de todas as faixas — diz ele, que propõe “desengravatar” a bebida.

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