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Em Brasília: as aparências enganam (II)

by admin

O fim do ano se avizinha e, com ele, o silêncio planejado do recesso parlamentar em Brasília. A cidade, que pulsa ao ritmo do poder, se esvazia. Seus eixos monumentais, normalmente congestionados pela urgência dos gabinetes, se transformam em longas pistas de asfalto quase desertas, devolvendo à paisagem uma quietude que talvez lembre o cerrado original, antes que o concreto armado e as curvas sinuosas de Oscar Niemeyer redesenhassem o horizonte. Fica-se a pensar que o recesso, o descanso, deveria ser um direito da massa brasileira trabalhadora, que ergue o país dia após dia. Um mês de férias remuneradas, o direito ao sorriso, à viagem, a desfrutar da vida e da natureza de uma nação que se vende como “abençoada por Deus e bonita por natureza” e que beleza. Mas quem pagaria as contas do povo? Os congressistas e suas notórias “rachadinhas”? A pergunta ecoa no vazio devorador da capital, do capital e do concreto armado, programado para apodrecer.

Essa Brasília esvaziada, no entanto, não é apenas um retrato sazonal. Ela é um símbolo profundo das aparências que enganam, da fachada de modernidade que esconde uma história de brutalidade. Quando Juscelino Kubitschek, em seus arroubos desenvolvimentistas de “50 anos em 5”, viabilizou a construção da nova capital federal, não foram apenas os traços de Niemeyer e Lúcio Costa que rasgaram o Planalto Central. Foi também o suor e o sangue de milhares de operários, os “candangos”, que para lá afluíram de todos os cantos do país, especialmente do Nordeste, em busca de um sonho que se revelaria pesadelo. Brasília, antes de sua inauguração em 1960, chegou a ter mais de 40 mil operários, em jornadas extenuantes de trabalho, para além de 18 horas por dia.

A narrativa oficial, aquela dos belos livros de arquitetura e das celebrações cívicas, exalta a epopeia da construção, o milagre da cidade que brotou do nada. Mas sob o verniz da utopia modernista, a realidade era outra. Conforme narrado pelo documentário “Conterrâneos Velhos de Guerra” (1991) – de Vladimir Carvalho e narrado pelo grande Othon Bastos -, os trabalhadores não foram apenas tragados pelo concreto em acidentes de trabalho acobertados; eles comiam o pão que o diabo amassou sob o sol inclemente do cerrado. As condições eram absolutamente precárias: alojamentos superlotados e insalubres, com colchões de capim infestados por parasitas, e uma comida que frequentemente chegava estragada, azeda ou contendo animais mortos.

O estopim da tragédia que o concreto tentou apagar deu-se em um refeitório. Em fevereiro de 1959, em pleno carnaval (desengano) uma revolta dos trabalhadores contra uma refeição intragável entregue pelos chefes da construtora Pacheco Fernandes foi o pretexto para uma repressão brutal. A temida Guarda Especial de Brasília (GEB), uma força policial conhecida por sua truculência e composta em grande parte por jagunços sem treinamento, foi chamada. Após um recuo inicial, a GEB retornou à noite, com reforços, e promoveu um massacre. Enquanto os operários dormiam, foram alvejados. A versão oficial, apurada em um inquérito “apressado”, falou em um morto e alguns feridos. No entanto, relatos de testemunhas, como os coletados pela professora Nair Bicalho, da Universidade de Brasília, falam em dezenas de mortos, cujos corpos teriam sido recolhidos em caminhões basculantes e desaparecidos para sempre, para que a mancha de sangue não maculasse o projeto da capital da “esperança”.

Cento e vinte malas de trabalhadores jamais foram reclamadas. Foi o “Massacre da Pacheco Fernandes.” Sintomático que leve o nome da construtora, não? E isso tudo ocorreu durante um governo eleito democraticamente, durante um dos poucos e efervescentes períodos democráticos da história brasileira, entre 1946 e 1964. A bossa era nova, mas a violência remontava às casas grandes e senzalas, vamos dizer que ligeiramente modificadas por pilotis de concreto, um fazendão modernoso, mas ainda assim, programado para matar.

O mais chocante, talvez, não seja apenas a violência do Estado contra aqueles que o construíam, mas o véu de silêncio e negação que se seguiu. Anos mais tarde, já nos anos 1990, os próprios arquitetos e urbanistas da cidade, os consagrados Niemeyer e Lúcio Costa, ao serem questionados sobre o massacre, o trataram com um desdém que beira a crueldade. Lúcio Costa, em particular, desqualificou o episódio como “espuma”, algo sem importância, “balela de taxista candango”, afirmando que os trabalhadores “têm essa tendência a romantizar, a fazer um drama de algo que, se você examinar historicamente, é menor, limitado”.

Ah, os nossos intelectuais. Tão fofos. A fala de Costa é um sintoma doloroso de uma elite que, quase que por natureza política, ignora o povo de um país cuja história é fundada na escravidão, na desigualdade e na profunda precariedade. A “espuma” de Costa é o sangue dos operários. A “balela” é a memória dos que foram silenciados. A negação dos criadores da cidade revela a profundidade do abismo social brasileiro: a obra monumental, o gesto estético, a utopia modernista, tudo isso se sobrepõe à vida humana, especialmente se essa vida for pobre, trabalhadora, nordestina, anônima.

Brasília, com suas curvas belas e seus palácios de vidro, é, portanto, uma crônica em concreto armado das aparências que enganam. Ela é a materialização de um Brasil que se projeta moderno, mas que se recusa a acertar as contas com seu passado violento e com as fundações brutais sobre as quais se ergue. O recesso parlamentar, com seus congressistas quase que invariavelmente de direita e centristas, com férias pagas enquanto o povo luta para sobreviver, é apenas a continuação dessa mesma lógica. A cidade vazia não é apenas uma cidade em férias. É uma cidade que, com seus silêncios e esquecimentos massacrantes, nos confronta com a verdade que assombra. Um Brasil cujo concreto armado da injustiça é mais sólido que todo e qualquer sonho de igualdade e dignidade.

 

Brasília, 1959. Trabalhadores da construção civil na Esplanada dos Ministérios. Fonte: Arquivo Público do DF.
A Explanada dos Ministérios em obras. Fonte: Marcel Gautherot.
Refeitório do canteiro de obras do IAPI em Brasília, 1959. Fonte: Mário Fontenelle/Arquivo Público do DF). Os trabalhadores do IAPI feram origem à Vila do IAPI, que por sua vez é o núcleo que deu origem à Ceilândia, de milhares de trabalhadores candangos expulsos do plano piloto logo após a construção de Brasília. A sigla IAPI vem do antigo Instituto de Aposentadoria e Pensões dos Industriários, criado no governo Vargas, mas no contexto de Brasília, remete à luta por moradia dos pioneiros.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Operários tomam café da manhã em Brasília. Fonte:  Arquivo Público do DF/Divulgação.
Caminhão transporta operários para obra em Brasília. Fonte: Arquivo Público do DF/Fundo Novacap/Divulgação.
Trabalhadores e o Congresso Nacional em construção. Fonte: Marcel Gautherot.



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