Na noite de sábado (29), a Universidade Federal do Rio Grande do Sul (Ufrgs) concedeu o título de Doutor Honoris Causa ao rapper, compositor e poeta Emicida – nome artístico de Leandro Roque de Oliveira. A decisão havia sido aprovada em 7 de novembro pelo Conselho Universitário (Consun) por meio do parecer nº 248/2025, que reconheceu sua trajetória como “projeto intelectual, educativo e de impacto social”.
Para além da música, o Consun destacou a relevância da cultura hip hop, a legitimidade dos saberes produzidos na diáspora africana no Brasil e o protagonismo da juventude negra e periférica na busca por igualdade. A outorga simboliza, para a universidade, a ampliação da noção de conhecimento: valoriza expressões culturais e formas de resistência que historicamente foram marginalizadas.
De onde veio a proposta e quem impulsionou a homenagem
A iniciativa de conceder o título a Emicida partiu do Coletivo de Estudantes Negros da Pedagogia da Ufrgs (Cenp), em parceria com o projeto Festival Ufrgs Negra, o Movimento Negro Unificado (MNU-RS) e o Diretório Central de Estudantes da Ufrgs (DCE). A proposta foi formalizada pela Faculdade de Educação da Ufrgs (Faced) e encaminhada ao Consun.
O parecer aprovado ressaltou ainda que a produção de Emicida já é objeto de dezenas de teses, dissertações e trabalhos de conclusão de curso, dentro da Ufrgs e em outras instituições, o que reforça sua relevância como objeto de estudo e referência cultural.
A origem dos conhecimentos periféricos, ancestralidade e resistência
Durante a sessão solene, diferentes representantes da comunidade universitária e da cultura negra destacaram o significado da homenagem.
Para uma das oradoras, Eliane Susage, integrante do movimento estudantil negro da universidade, a concessão afirma “um novo capítulo sobre o que compreende como conhecimento, educação e compromisso social: os conhecimentos periféricos – vindos das periferias, dos quilombos urbanos, das batalhas de MCs e das ruas – ganham espaço dentro da academia”.
Segundo Susage, o artista, para muitos jovens estudantes e trabalhadores negros da Ufrgs, representa não apenas inspiração, mas também “referência, espelho, caminho”. A produção dele, especialmente o projeto Amarelo, passou a ser “material de sala de aula, debates e pesquisas acadêmicas”, trazendo a ancestralidade, o racismo estrutural e a esperança para além dos livros. Para ela, “o rap é uma sala de aula em movimento”, uma “pedagogia viva” que dá nome ao que os manuais tradicionais muitas vezes não abordam.
A educadora social Carla Zamp, MC e coordenadora do Museu de Cultura Hip Hop no Rio Grande do Sul, expressou o orgulho por ver um artista negro, oriundo da periferia, reconhecido em uma universidade pública gaúcha. Segundo ela, Emicida representa “mais uma voz para mudar o mundo” – e sua presença na Ufrgs carrega simbolismo num estado marcado por heranças de racismo e exclusão de artistas negros. Ela lembrou que a obra do artista foi citada recentemente no âmbito institucional, quando uma ministra do Supremo Tribunal Federal usou trechos para fundamentar um voto contra o racismo.
O vice-reitor da Ufrgs, Pedro de Almeida Costa, chamou a outorga de “momento histórico”. Para ele, a instituição busca se tornar “aberta e plural”, transformando-se pela presença de pessoas historicamente excluídas. Costa associou a poesia de Emicida ao conceito de quilombismo – entendido como reunião fraterna, solidariedade e comunhão existencial – convidando a comunidade a fazer da Ufrgs “um quilombo alegre, vivo e amoroso”. Com isso, reforçou o caráter político e simbólico da honraria.
Em seu discurso, Emicida fez questão de afirmar que a conquista não é individual, mas coletiva. “O que me trouxe até aqui foi a capacidade de improvisar. Esse frio na barriga é um sinal de que podemos fazer algo novo, mantendo em nós a sensação de estar vivo”, disse ele. Para o artista, o título vem do “calor do coração da comunidade e da mente comprometida em transformar a realidade”.
Emicida destacou que a grande obra da comunidade hip hop são suas vidas – vidas construídas em comunidade contra “um sistema opressor, assassino e genocida”. Ele considerou impensável falar de continuidade da vida humana sem lutar pela preservação do meio ambiente e pela valorização dos saberes locais, originários, ancestrais.
O rapper invocou o conceito africano de Ubuntu – “Eu sou porque nós somos” – e sugeriu que, em português, a melhor tradução seria “É nós”. Para ele, a ternura (tenderness) é o antônimo do racismo: é onde o racismo não sobrevive. Em seu entendimento, o Brasil pode ser um território de recuperação da humanidade, por meio do respeito ao outro e às outras culturas.
Importância institucional e simbólica da homenagem
Para a Ufrgs, a concessão do título a Emicida representa um movimento de desconstrução de um modelo universitário elitista e excludente. Trata-se de uma afirmação de que a academia não pertence apenas aos saberes clássicos, formais e tradicionais, mas também às expressões culturais, muitas vezes marginalizadas, vindas de periferias, da juventude negra, da cultura popular.
Com a inclusão da cultura hip hop como objeto legítimo de pesquisa, ensino e extensão, a universidade abre espaço para que memórias, narrativas e conhecimentos periféricos sejam reconhecidos enquanto formas de saber. O título, por isso, simboliza não só o reconhecimento da carreira de um artista, mas também o fortalecimento de lutas antirracistas, de representatividade e de democratização do acesso ao conhecimento.
Festival Ufrgs Negra 2025
A sessão solene aconteceu durante o Festival Ufrgs Negra 2025, cujo tema este ano foi “A universidade é nóiz”, referindo-se à frase de Emicida. Após a entrega do título, houve programação cultural aberta ao público – com batalhas de rap, DJ, desfile de moda inspirado nas músicas do artista, além de outras manifestações culturais. A organização solicitou a doação de 1 kg de alimento não perecível para ingresso, que seria destinada a cozinhas comunitárias de Porto Alegre.
