Por Cleber Lourenço
A sessão de ontem na Câmara não foi apenas um espetáculo constrangedor: foi um mergulho guiado, sem cilindro de oxigênio, no esgoto institucional que Brasília insiste em perfumar. Nada ali lembrava uma Casa legislativa. Parecia mais um condomínio de interesses privados — alguns limítrofes à ilegalidade, outros mergulhados nela — tentando manter as aparências enquanto toma decisões que impactam 200 milhões de pessoas.
A Câmara, atolada em escândalos, expôs mais uma vez sua vocação para produzir vergonha pública em cadeia nacional: conexões com facções criminosas, esquemas de emendas bilionárias funcionando como lavanderias sofisticadas, negócios com bancos falidos, rachadinhas em versão executiva, milícias orçamentárias, operadores de gabinete e assessores fantasmas que andam tão soltos quanto os projetos de lei que deveriam servir ao país.
E, mesmo assim, teve a audácia de reagir como guardiã da ordem quando Glauber Braga ousou se sentar na cadeira da presidência para denunciar a farsa da anistia disfarçada. Apenas sentou. Nada mais. Não quebrou nada, não ameaçou ninguém, não impediu votações.
Mas bastou para Hugo Motta transformar o plenário num teatro de histeria. Gritos, tumulto, segurança acionada, sessão suspensa, parlamentares em performance de indignação. Uma reação tão exagerada que só serviu para revelar um medo profundo: o de que alguém exponha, mesmo que por um instante, o teatro montado para aprovar a limpeza penal dos aliados do golpe.
E é impossível não comparar com o que houve em agosto, quando a extrema direita ocupou o plenário por dois dias inteiros. Dois dias travando a Casa, paralisando votações e intimidando parlamentares — e a reação foi uma espécie de spa institucional: calma, tolerância, tapetes vermelhos e discursos sobre compreensão. Não houve expulsão, nem histeria, nem tumulto.
O recado é claro: para a Câmara, ocupação de esquerda é afronta; ocupação da extrema direita é visita.
Mas a noite de ontem expôs algo ainda mais profundo: a fraqueza política de Hugo Motta.
Porque, se durante a sessão ele tentou posar de líder firme, nos bastidores permanece a lembrança recente de que Motta — ao lado de Arthur Lira — fracassou na tentativa de cassar Glauber Braga. Eles tentaram enquadrar, isolar, triturar politicamente Glauber. Não conseguiram. E a derrota expôs o que Brasília já comenta em voz baixa: Motta tem menos força, menos articulação e menos autoridade do que imagina.
O teatro de ontem, portanto, também serviu como catarse para seu próprio ressentimento. Se não conseguiu cassar Glauber no tapetão, tentou cassá-lo simbolicamente na humilhação pública — expulsando-o da cadeira em que se sentou por poucos minutos.
Mas, ao contrário do que Motta tenta projetar, o episódio apenas reforçou sua pequenez política.
Depois dessa encenação, a pressa para votar a anistia disfarçada beirou o desespero. O texto, vendido como “dosimetria”, é um Frankenstein jurídico que reduz penas, suaviza responsabilidades, cria atalhos penais e tenta, com sutileza de marreta, apagar as digitais do golpe de 8 de janeiro.
Para aprová-lo, Hugo Motta agiu como gerente de loja prestes a ser auditada: acelerou, atropelou, cortou falas, ignorou protestos, fingiu decoro e empurrou o projeto com a frieza de quem cumpre missão — e sabe exatamente a quem deve servidão.
E tudo isso vindo de uma Casa que convive, sem ruborizar, com:
- delações que mencionam relações entre parlamentares e facções criminosas;
- esquemas de orçamento secreto abastecendo prefeituras fantasmas e empresas de fachada;
- líderes partidários tratando bancos falidos como se fossem extensões de seus gabinetes;
- operadores de campanha investigados por lavagem de dinheiro, fraudes tributárias e compra de apoio político.
É essa Câmara — essa mesma — que tentou expulsar Glauber por sentar numa cadeira. E é essa Câmara — essa mesma — que limpou a ficha penal de golpistas horas depois.
Hugo Motta talvez tenha ido dormir acreditando que venceu o dia. Mas o que ele venceu, de fato, foi a disputa por quem mais expõe, sem pudor, a falência moral da instituição que representa.
Não foi Glauber quem desmoralizou a Câmara. Foi a Câmara, com Hugo Motta no volante, que se encarregou de desmoronar diante das câmeras.
E por mais que tentem encobrir, o rastro ficou: uma mistura de autoritarismo performado, incompetência política e podridão institucional cuidadosamente varrida para baixo da cadeira da presidência — até que Glauber sentou exatamente ali e mostrou ao país o que sempre esteve escondido.
Glauber saiu da cadeira mas Hugo Motta ainda procura onde foi que deixou a própria autoridade.
