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‘Inimigo comum’: Ataques a Fernanda Torres e Havaianas demonstram ferramenta clássica do bolsonarismo

by admin

De tempos em tempos, acontece de algum artista ou influenciador cair na rede de ofensas dos políticos bolsonaristas. A atriz Fernanda Torres, vencedora do Globo de Ouro por sua atuação no filme Ainda Estou Aqui, é o alvo da vez.

Neste fim de ano, ao participar de um comercial da marca de calçados Havaianas, a atriz acabou se tornando mais um exemplo de como figuras representativas da extrema direita usam as redes para fortalecer seus discursos com o que, segundo especialistas, é uma ação coordenada.

Bastou Fernanda sugerir que comecemos o ano “não com o pé direito, mas com os dois pés”, para desencadear uma onda de reações entre os bolsonaristas.

Em um desses conteúdos, o deputado cassado Eduardo Bolsonaro (PL) aparece segurando uma sandália. “Eu achava que isso aqui era um símbolo nacional, só que eu me enganei”, diz, em vídeo publicado no seu perfil do Instagram. “Eles escolheram para ser a garota propaganda da sandália uma pessoa declaradamente de esquerda (…) E ainda fala pra você não começar o ano com o pé direito. Isso não foi por acaso, me desculpe”, lamenta o deputado, enquanto joga as sandálias em um cesto de lixo.

Por trás da performance midiática, que rendeu compartilhamentos, comentários e uma onda de críticas à marca nos perfis de influenciadores alinhados a esse campo ideológico, está uma estratégia política usada há tempos, conforme avalia a Carolina Botelho, doutora em ciência política, vinculada ao Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia em Neurociência Social e Afetiva (SANI/CNPq). “É uma estratégia utilizada desde a construção disso que a gente vem chamando de bolsonarismo (…) É uma estratégia que eles usam desde sempre para engajar a militância”, diz a cientista, que é consultora do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE)/Fundo de População das Nações Unidas.

Faz parte dessa estratégia apontar inimigos, como artistas e pesquisadores que, em seus trabalhos, alertam para as falhas de determinadas crenças defendidas pela extrema direita.

“A metralhadora vai estar sempre apontada para essas pessoas, como os cientistas, os intelectuais, os professores, que mostram que a cloroquina não é eficaz para Covid”, exemplifica Botelho, remetendo à pandemia da Covid 19, quando o então presidente Jair Bolsonaro defendeu o uso do medicamento cloroquina, cuja ineficácia no combate à Covid era cientificamente comprovado. “Aqueles que de alguma forma mostram através, seja dos estudos, da pesquisa, dos dados ou da arte mesmo, que aquele tipo de comportamento que a extrema direita está desenvolvendo no Brasil é um comportamento deletério para a sociedade”, avalia.

A escolha de pessoas “odiáveis” – como é apontada, neste momento, a atriz Fernanda Torres, facilita o processo de polarização política. “Essa polarização, a delineação de um outro, de um inimigo, a ideia de uma inimizade, são gatilhos comunicacionais e sentimentais muito fortes. Eles mobilizam sentimentos e eles simplificam o espectro político”, avalia a cientista política e professora da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), Mayra Goulart. “Então, em vez de falar das articulações do [presidente da Câmara] Hugo Motta, que é uma figura muito complexa, é mais fácil você simplificar, falando que é o comunismo, é a esquerda, que é contra isso que ‘a gente luta’”, diz.

O pé direito

A reação da extrema direita gerou uma série de respostas e, também, análises públicas de especialistas em marketing, ciências políticas e comunicação. Em um vídeo compartilhado no seu canal no Instagram, o pesquisador de plataformas e conteúdos Gustavo Padovani, doutor em Multimeios pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), lembra que o uso de ditados populares – como o começar com o pé direito – é comum em peças publicitárias.

O problema, neste caso, é o conjunto da obra. “A figura da Fernanda Torres leva a toda essa discussão por causa do posicionamento político dela, do filme que ganhou o Oscar este ano”, aponta o pesquisador, que dirigiu filmes como Caipiras nas Telas e Para Além do Parque.

Ainda Estou Aqui, longa-metragem que garantiu a Fernanda o prêmio de Melhor Atriz no Globo de Ouro, retrata as violências sofridas pela família Paiva, vítima da ditadura militar no Brasil. Vale lembrar que Jair Bolsonaro é admirador confesso do coronel Carlos Alberto Brilhante Ustra – reconhecido pela Justiça como torturador no período ditatorial.

Na análise de Padovani, a escolha pela atriz “se explica porque a Havaianas, enquanto marca brasileira de alcance global, aposta estrategicamente nessa figura que ela representa, que esteve em forte evidência esse ano, principalmente pela indicação no Oscar”. No entanto, a figura e a mensagem combinadas resultaram na fórmula perfeita para a criação de conteúdo com potencial de viralizar entre os bolsonaristas.

“O problema surge quando a mensagem de não começar com o pé direito é interpretada e também instrumentalizada pelo campo da direita, fazendo com que influenciadores e políticos passem a tratar isso como um ataque direto para o seu campo simbólico”, ressalta Padovani.

A fórmula é simples, a viralização é rápida e o esquecimento, também. “E esse é só mais um tema que, daqui a dois ou três dias, vai sair de pauta para ser substituído por outro assunto, só para manter a disputa das redes em evidência”, finaliza o pesquisador.

Carolina Botelho, no entanto, destaca que, em 2026, – ano de mais uma disputa eleitoral que promete ser acirrada e polarizada – esse tipo de distorção de discursos deve ser frequente.

“Então, a sociedade precisa estar atenta às mensagens que estão sendo ditas por esse campo [extrema direita]. Que construção está por trás disso?”, questiona. “Se a gente vê de uma forma isolada, parece uma coisa inocente. Mas a fala, por exemplo, de um representante político com o deputado Nicolas Ferreira (PL), produz efeitos práticos e ações práticas na sociedade, produz reações da sociedade. A gente tem visto isso de forma avassaladora”, alerta.



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