Idealizar e testar. As palavras foram escolhidas pela assistente social Liliane Santos como subtítulo de um dos slides do seu trabalho de conclusão da pós-graduação em Urbanismo Social do Insper, instituição de ensino superior baseada em São Paulo. Os dois termos não esgotam o assunto — longe disso, seria necessário acrescentar verbos como analisar, propor, construir, entre muitos outros possíveis —, mas ajudam a resumir um conceito básico do que vem a ser urbanismo social: a criação de uma infraestrutura urbana que ande de mãos dadas com ações capazes de melhorar o dia a dia de quem mora em áreas vulneráveis da cidade.
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Liliane, nascida e criada na Baixa do Sapateiro, uma das 15 favelas que compõem o Complexo da Maré, na Zona Norte da capital fluminense, é uma das 19 pessoas do Rio que tiveram a oportunidade de concluir o curso, que tem duração de um ano e já recebeu 156 alunos desde sua criação, em 2020. Assim como ela, boa parte dos alunos “cariocas” contou com bolsas de estudo e ajuda de custo do Instituto Manu, já que, além do deslocamento e da hospedagem em São Paulo durante quatro dias, uma vez por mês, é preciso arcar com mensalidades que podem chegar a 24 parcelas de R$ 2,5 mil sem descontos.
O protótipo apresentado pela aluna idealiza uma nova paisagem para a Rua Evanildo Alves, via emblemática da Baixa, no limite com a Nova Holanda, uma espécie de fronteira interna não desenhada, mas muito bem conhecida por todos os moradores pelo histórico de violência e confrontos. Ponto de tensão natural por servir de limite entre territórios ocupados por facções diferentes, o local, não por acaso, passou a receber iniciativas da Redes da Maré, organização civil atuante na área, cuja diretora, Eliana Sousa Silva, professora e doutora em Serviço Social, é uma das coordenadoras da pós oferecida pelo Insper.
A divisa
O desenho proposto por Liliane, com ajuda de Inteligência Artificial, mostra a rua mais verde, com área de convívio definida, bancos e um valão que se transforma em curso d’água limpo e agradável. Na comparação com a imagem real, chama muito a atenção a ausência do muro alto e frio que separa o Ciep Elis Regina da rua. Em seu lugar, uma pequena portaria, um portão em arco com tijolos aparentes e grades que permitem a integração visual dos espaços.
— Coloquei a grade no projeto, mas o ideal é que nem isso tivesse, que fosse um espaço integrado e voltado para convivência com o mobiliário urbano — diz a pesquisadora de 37 anos, que é mestre em Justiça e Segurança. — Eu tenho bem vivas na memória as cenas de violência que vi ali, gente picotada, era isso. Ao longo do tempo, foram sendo feitas pequenas ações pela Redes da Maré e a realidade hoje já é outra. Muitas vezes, pequenas intervenções têm mais impacto do que grandes obras.
No seu trabalho, a assistente social Liliane Santos propõe intervenções para a Rua Evanildo Alves, na Maré, via que ganhou fama como palco de casos de violência entre facções
Liliane Santos
No trabalho, que no título fala em “alternativas comunitárias de Segurança Pública sem enfrentamento armado”, ela cita a criação da Praça da Paz e do Memória da Maré como exemplos dessas pequenas ações que tiveram impacto positivo no local, segundo dados do projeto De Olho na Maré
A Rua Evanildo Alves foi o tema do trabalho de outro pós-graduado no Insper com apoio do Instituto Manu. Geógrafo formado pela UFRJ, Rian de Queiroz, de 29 anos, nasceu e cresceu no Parque Maré e escolheu a via famosa como tema do seu estudo: “Entre margens, um centro: transformação da Divisa, no conjunto de favelas da Maré – Fase 1: requalificação socioambiental”. Divisa, como já vimos, é a forma como a rua é tratada pelos moradores.
Ouvidos atentos. O historiador Franco Nascimento, que fez a pós-graduação do Insper, pesquisou sobre a Cruzada, onde sua a família vive há três gerações
Agência O Globo
Rian propôs uma requalificação socioambiental que inclua reciclagem, capacitação e integração com políticas públicas existentes. O foco do trabalho é o acúmulo de lixo no local, um dos sintomas do “problema da marginalização da rua” como ele escreve.
— O lixo é a marca visível, mas a raiz é a desigualdade socioeconômica. É uma galera que precisa sobreviver daquele lixo, então acabam surgindo grandes lixões ali, a céu aberto. A proposta do trabalho é fazer uma requalificação socioambiental integrando reciclagem, capacitação dessas pessoas de forma integrada com políticas públicas que já existem no município para criar uma forma de remunerar essas pessoas de forma justa — explica Rian.
Pós-graduado na turma de 2024 do curso, Rian explica a escolha da rua:
— Quando a gente escolhe trabalhar a Divisa, a gente escolhe a área mais complexa para mostrar que, se ali deu certo, em outras regiões também vai dar. O urbanismo social fala muito desse simbolismo. A intervenção precisa qualificar o território, claro, mas também precisa transmitir uma mensagem: transformar uma realidade considerada impossível mostra que outras transformações também são possíveis.
Atravessando a cidade da Zona Norte para a Zona Sul, o professor de História na Uerj e doutor em Sociologia pela mesma universidade Franco da Costa Nascimento, de 35 anos, acaba de terminar a pós em Urbanismo Social. Filho e neto de moradores da Cruzada São Sebastião, no Leblon, Franco, claro, se debruçou sobre o conjunto de prédios idealizado há 70 anos por Dom Hélder Câmara para construir seu trabalho de conclusão de curso. O título é curto e significativo: “A Cruzada bem na foto”.
Contrastes no bairro
Franco comparou os indicadores produzidos pelo IBGE sobre o Leblon com levantamentos próprios feitos na Cruzada, o que revelou contrastes profundos, sobretudo no perfil racial. Ele mostra, por exemplo, que os dados do Censo — que analisa os 37.709 moradores do bairro, incluindo a Cruzada — revelam que a população no Leblon é composta por 85,8% de brancos, 4% de pretos e 9,9% pardos, entre outros. Já na Cruzada em si, segundo o levantamento do pesquisador, são 73,3% de pretos, 20,9% de pardos e 4,7% brancos, entre outros.
Franco, descreve a Cruzada — onde segue vivendo — como uma experiência urbanística única no país, nascida com a proposta de integrar diferentes grupos sociais num território de alto padrão, mas que acabou abandonada pelo poder público. Ele avalia que o urbanismo social abre caminho para recuperar essa vocação original, combinando diagnóstico, participação e articulação entre moradores.
— Meu projeto começa como diagnóstico, mas não termina aí. A ideia é que ele evolua para transformações concretas, físicas mesmo, aquelas que a própria comunidade apontou como necessárias. Quando abri o “cardápio” de possibilidades, os moradores trouxeram propostas muito objetivas: energia solar, horta comunitária, elevadores, jardins, coleta seletiva. Não é abstrato. Eles sabem exatamente o que querem para melhorar a imagem e o cotidiano da Cruzada — diz.
Sem fórmulas
Quando perguntado sobre algo que aprendeu com o curso, Franco fala em diálogo:
— O Brasil é complexo demais para soluções prontas. O que aprendi no urbanismo social é que é preciso ouvir o morador, sem ouvir quem vive no local, não é possível. Não adianta chegar com fórmulas prontas.
O Instituto Manu reúne 15 escritórios entre os mais bem-sucedidos no mercado de arquitetura de alto padrão do país, cujos clientes destinam 1% do valor de suas obras para viabilizar a concessão das bolsas de estudo. Entre 2022 e 2025 foram quase R$ 2,6 milhões investidos no programa.
— É mais do que evidente que os agentes tradicionais não serão capazes de combater a desigualdade social e suas consequências como a violência urbana e o racismo ambiental. É urgente que a gênese do pensamento urbanístico e o entendimento de sua potência como vetor de transformação floresçam dentro das comunidades. Dessa inquietação nasce o nosso instituto, com o objetivo de formar líderes com as ferramentas para transformar a realidade dos territórios onde vivem — diz o arquiteto e urbanista Miguel Pinto Guimarães, presidente do Instituto Manu.
Créditos
Instituto oferece bolsas no curso de Urbanismo Social a estudantes de áreas vulneráveis; pós-graduação tem duração de um ano
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