Por Gisele Agnelli e Luciana Bauer*
O ataque dos Estados Unidos ao noroeste da Nigéria, anunciado no Natal, não pode ser lido como um simples episódio de contraterrorismo. Tampouco como uma operação cirúrgica contra o ISIS ou grupos anticristãos. O que se tem ali é algo mais profundo e inquietante: um manifesto ideológico condensado, cuidadosamente calibrado para três públicos simultâneos: o eleitorado evangélico doméstico, o establishment securitário americano e o Sul Global tratado, mais uma vez, como tabuleiro colonial.
A Nigéria não é um detalhe periférico. Trata-se de uma potência regional africana, o país mais populoso do continente, alternando com a África do Sul a posição de maior mercado consumidor, peça-chave no Golfo da Guiné e ator estratégico em cadeias energéticas, minerais e logísticas globais. É também território de crescentes investimentos chineses: ferrovias, infraestrutura, mineração, tecnologia e também de cooperação militar russa.
No discurso e na comunicação oficial do governo americano, o “noroeste da Nigéria” aparece como um espaço abstrato: sem soberania, sem governo, sem história. Não há qualquer menção ao Estado nigeriano, à União Africana ou a marcos mínimos do direito internacional.
A África surge, mais uma vez, como palco invisível da política de força… A guerra ocorre fora do campo de visão, logo, fora do debate democrático.
No enquadramento escolhido por Donald Trump, o conflito é apresentado não como terrorismo internacional, insurgência regional ou disputa por recursos, mas como uma guerra de cristãos contra muçulmanos.
Essa escolha narrativa mobiliza o imaginário histórico das Cruzada e legitima a violência extraterritorial sob o manto da “proteção dos cristãos”.
Não é irrelevante o vocabulário utilizado. “Departamento de Guerra” não Defesa, “ataques perfeitos”, “terroristas mortos”, “haverá muitos mais”. Não há diplomacia, mediação, ONU ou legalidade internacional. O que se produz é uma necropolítica performática, em que a morte vira espetáculo narrativo e o Natal, moldura simbólica de punição divina, Trump o messias.
A mensagem central não é dirigida ao ISIS. O subtexto geopolítico real é dirigido à China, à Rússia e ao Sul Global como um todo. O recado é : os Estados Unidos seguem dispostos a operar unilateralmente, fora de qualquer ordem multipolar emergente, sem pedir licença, sem prestar contas.
Esse movimento dialoga diretamente com a reorientação estratégica do aparato de defesa americano. Sob a liderança de Pete Hegseth, o Departamento de Defesa incorpora como figura central Elbridge Colby, do think tank Marathon Initiative. Colby defende uma competição sistêmica entre grandes potências, com a China como ameaça central, propondo um reposicionamento militar agressivo dos EUA no Indo-Pacífico e além.
A África, nesse desenho, deixa de ser periferia: torna-se fronteira estratégica indireta da disputa sino-americana.
Talvez o aspecto mais alarmante seja a completa normalização da guerra sem debate público. Não há deliberação no Congresso, não há cobertura internacional robusta, não há prestação de contas. Há apenas um anúncio, um post, uma performance.
A guerra, assim, deixa de ser exceção e se torna rotina administrativa. A violência estatal extraterritorial passa a operar em modo automático, sustentada por narrativas morais simplificadas.
E, desta forma, entramos em 2026 sob a nova política externa iliberal de Trump…a pergunta é qual o inimigo do dia? Na Nigéria o terrorismo anti-cristão. Na Venezuela o narcoterrorismo. Domesticamente os imigrantes, a esquerda-radical, as pessoas trans.
*Gisele Agnelli e Luciana Bauer são fundadoras da Agnelli-Bauer Strategies.
