Na terça-feira, Kami, a personagem de Giovanna Lancellotti na novela das 19h da TV Globo “Dona de mim”, aparecerá assistindo a uma… novela. Mas não de frente para a televisão e, sim, com a cara no celular. A nova “Tudo por uma segunda chance” é uma novelinha vertical, feita exclusivamente para o consumo em telas de formato 9:16 e distribuição pelas redes sociais da emissora (no TikTok, Instagram, Facebook, X, YouTube e também no streaming Globoplay).
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A história do triângulo amoroso entre os noivos Lucas e Paula (Daniel Rangel e Débora Ozório) e a vilã Soraia (Jade Picon) — com envenenamento, casamento cancelado, coma hospitalar e prisão injusta — segue a lógica do fenômeno dos microdramas: agilidade e emoção. A produção é enxuta, há poucos personagens e o texto preza pela capacidade de viralização, com fins de capítulos fortes e temas universais de amor, traição, vingança e segredos. Para atingir tudo isso, os capítulos não costumam passar de três minutos, e a trama toda tem, no máximo, 70 episódios.
— No microdrama, sempre se preserva a história principal, com muitos ganchos — explica o diretor artístico da novidade, Adriano Melo, que vêm estudando o formato, originalmente chinês, desde o fim do ano passado. — O capítulo não tem “barriga”. Eles são sempre muito focados, sem tramas paralelas.
O movimento da TV Globo e do Globoplay (a plataforma terá uma novelinha original a partir do dia 12, “Cinderela e o segredo do pobre milionário”, estrelada pelo cantor Gustavo Mioto, e mais dez estão previstas para 2026, além da compra de títulos internacionais) visa a ganhar terreno num negócio promissor. Segundo a empresa de consultoria Media Partners Asia, os short dramas ou vertical dramas movimentaram US$ 1.4 bilhão em 2024, sem contar a China. A previsão é de que, em 2030, essa cifra chegue a US$ 9.5 bilhões. Por isso, gigantes americanas como Fox e Disney também estão verticalizando o olhar, investindo em plataformas voltadas à produção e distribuição desse tipo de programa.
No Brasil, entre as mais baixadas estão Dramabox (que recebeu aporte da Disney), GoodShort e ReelShort, que oferecem os primeiros episódios de forma gratuita. Depois, cobram valores a partir de R$ 4,90 para liberar inéditos — o Globoplay vai adotar esquema semelhante (veja detalhes na página 2). Todos esses apps estão em português, mas têm origem na China, onde os microdramas surgiram durante a pandemia. A imensa maioria do conteúdo também vem de fora, sendo, no máximo, dublado.
— O aparecimento dos microdramas verticais é inseparável da popularidade do conteúdo convencional de streaming (em formato longo) e do surgimento das plataformas de vídeos curtos, como TikTok — explica Wenjia Tang, pós-doutora em comunicação digital e pesquisadora da Universidade de Sydney, uma das principais estudiosas desse formato. — Ele combina as forças de ambos, atraindo o público dos dois lados.
A engenheira civil paulistana Lilian Agostinho, de 33 anos, é um exemplo do que diz Wenjia Tang. Ávida consumidora de séries no streaming, principalmente coreanas, rendeu-se ao formato curto das novelinhas, que se encaixam melhor na rotina de quem está na correria.
— Gosto de histórias que me iludam, que me façam acreditar que o mundo é fantasia. Sou engenheira, trabalho com obra, lido com peão e patrão, e na hora em que sento para assistir alguma coisa, quero me distrair — diz Agostinho, que aproveita o tempo que passa no transporte público para “maratonar”, por exemplo, “A vingança da herdeira descartada”, uma das últimas novelas verticais a que assistiu. — Os nomes me lembram muito aqueles livrinhos da coleção “Sabrina” das bancas de jornal. O vício só mudou de mídia.
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Nenhum título viciou tanto o público quanto “A vida secreta do meu marido bilionário”, versão 100% brasileira de “The double life of my billionaire husband”. Sob encomenda do ReelShort, ela foi produzida pela Bewings Entertainment, do casal Iuri Pinto e Katharine Albuquerque, que escalaram atores locais e deram ao texto original um ligeiro sotaque carioca. A máfia russa não se criou: virou jogo do bicho. Em quatro meses, chegaram a 500 milhões de visualizações, só no app do ReelShort, sem contar os episódios pirateados no TikTok, no Instagram e em canais do Telegram.
— Gravamos no Rio em sete dias, com 100% de câmeras profissionais e equipe bem experiente — diz Iuri, sem poder revelar os custos de uma produção como essa. — O que posso dizer é que são baratas. Custam em média um quinto do valor de um longa-metragem de baixo orçamento.
O preço baixo, se comparado a uma série ou a um “novelão”, vale o risco. É o que diz o roteirista Antonio Prata, um dos sócios da Tele Tele, produtora que começa a gravar nesta semana sua primeira vertical, escrita por ele e por Chico Mattoso. A ideia é distribuir esse título e outros mais, já encomendados, num app próprio a partir do primeiro trimestre do ano que vem.
— Se você coloca 180 capítulos no ar e eles dão errado, perde-se milhões — diz Prata, que finaliza o roteiro de mais duas. — Mas, caso uma novelinha dessa dê errado, o dinheiro é curto. É um lugar interessante de experimentação.
Além de espaço para histórias originais, os microdramas podem ser uma casa nova para velhos conhecidos. O Globoplay, por exemplo, colocará no ar tramas focados em personagens inesquecíveis de novelas da TV Globo.
Bibi Perigosa, interpretada por Juliana Paes em “A força do querer”, ganhará uma novelinha com seus melhores momentos no novelão de 2017. O mesmo acontecerá com Angel (Camila Queiroz), de “Verdades secretas”, de 2015, e o casal Ramiro (Amaury Lorenzo) e Kelvin (Diego Martins), de “Terra e paixão”, de 2023.
— Tenho prestado muita atenção no movimento de adaptação de conteúdos de múltiplas mídias, como romances, games e quadrinhos, para microdramas — diz Wenjia Tang, pesquisadora da Universidade de Sydney. — Isso atrai fãs de diferentes setores e pode beneficiar tanto o público quanto o mercado.
Até agora, fala-se apenas em “novelinha” e suas histórias de amor e vingança. Mas dá para outros gêneros da televisão “horizontal” rolarem nesse feed?
— O pontapé inicial foi dado: a mudança do padrão de consumo, com as pessoas dispostas a assistirem — analisa Iury Pinto, da Bewings. — A partir disso, os realizadores começam a ofertar. Acredito que pode abrir espaço, por exemplo, para um reality show e ou outros tipos de programas que consumimos.
Na Austrália, país com mais estudos sobre o tema depois da China, o roteirista e pesquisador Christopher Gist acredita que o mercado agora está prestes a separar o joio do trigo.
— Espero uma peneira entre produtores que miram um público que busca ótimos roteiros e bons atores, e outro segmento em que o foco é menor na qualidade da imagem, do texto e do elenco — diz o pesquisador nas Universidades de Melbourne e South Australia, antes de usar a expressão da vez: inteligência artificial. — Mas, em breve, também veremos do que são capazes os grandes apps com IA avançada. A questão de longo prazo é essa, mas quão longo é esse prazo?
