Demorei um tempo para assistir, correndo como estava com os afazeres de um Brasil que só sabe trabalhar. A ironia é que, ao finalmente ir para a telona para ver “O Agente Secreto”, de Kleber Mendonça Filho, deparei-me com uma obra que, em sua essência, reflete sobre o próprio sentido do trabalho e da existência em um país moído por uma brutalidade histórica. E que primor de trabalho o cineasta pernambucano realiza. É o puro suco do Brasil, uma narrativa que condensa memória e esquecimento, tristeza e cansaço, mas que, como bem nos lembra a primorosa personagem Dona Sebastiana, é também uma teimosa pirraça contra uma história invariavelmente violenta.
A violência e o que se poderia chamar de “surrealismo” brasileiro tomam o filme desde a sua cena de abertura. Um corpo, caído no pátio de um posto de gasolina, apodrece há dias sob o sol indiferente de Pernambuco. As moscas zumbem, os cães rondam, os policiais achacam e a vida segue. Não será esta a metáfora constante da banalização da violência e da morte no Brasil? Uma imagem que evoca tanto os desaparecidos da ditadura quanto as vítimas anônimas da violência urbana cotidiana, cujos corpos se tornam parte da paisagem. Kleber Mendonça Filho não filma o extraordinário, ele apenas enquadra o horror que se tornou ordinário.
Nesse mesmo terreno, entre o real e o assombro, surge a folclórica “perna cabeluda”. A lenda, que aterrorizou o Recife nos anos 1970, em pleno auge da repressão militar, é ressignificada no filme. Ela é, ao mesmo tempo, um eco dos corpos mutilados e desaparecidos pela ditadura: um expediente do terror de Estado que se inscreve no imaginário popular como monstro (conservador e moralista) e a ameaça palpável e contemporânea dos tubarões que assombram as praias de Boa Viagem. E para além dela, a ameaça que vem do mar, seja na referência de ‘Tubarão’, o clássico de Spielberg, que retratou a ameaça da “Guerra Fria” invadindo o imaginário americano, seja o Brasil de um grande mar salgado (ou um oceano inteiro) que foi palco durante séculos do tráfico de africanos escravizados, acorrentados, história que nos assombra até hoje. O filme tece com maestria essa dualidade, mostrando como o medo no Brasil se alimenta tanto de fantasmas históricos quanto de perigos concretos, ambos frutos de desequilíbrios e violências.
Contudo, como já disseram por aí, seria um erro classificar “O Agente Secreto” como mais um filme sobre a ditadura. A obra transcende essa gaveta para se tornar um ensaio sobre a longa duração da violência em um país que, desde sempre, convive com a chaga da subcidadania. A ditadura de 1964 é só um dos ápices dessa mesma violência, a intensificação de uma lógica de extermínio e opressão que sempre esteve presente. Os matadores do Sudeste, com sua lógica empresarial “bandeirante” e racista, jamais entenderão os do Nordeste, herdeiros de uma tradição de violência que remonta aos jagunços e cangaceiros, figuras complexas de uma ordem social baseada na honra, na terra, no sangue e na resistência.
O personagem de Gabriel Leone (Bob), o matador de aluguel que caça o protagonista, é a encarnação dessa outra estirpe de violência que, na esteira de ‘Bacurau’, parece nos alertar sobre uma São Paulo e um Sudeste que sempre enviam seus matadores supremacistas, sejam eles os Bandeirantes ou os “Terços Paulistas” do século XVII, que degolavam os indígenas janduís ou que massacravam o Quilombo dos Palmares, sintomaticamente na então Capitania de Pernambuco. Confesso que torci muito pela emboscada que o “trabalhador-estivador-matador-bicho” de aluguel fez na barbearia: ali é pirraça e cangaço no DNA, na sobrevivência alucinante de uma história sempre brutal. Não nos enganemos: ninguém escapa da dor e da violência que tudo permeia. E botem reparo: é, em geral e sempre, uma gente trabalhadora e sobrevivente. Entre o trabalho formal e o precário, um único encontro: violência sem fim.
E é o Recife que serve de palco mítico para essa saga. Kleber Mendonça Filho, mais uma vez, narra o Brasil a partir de sua cidade, um lugar cuja história é um palimpsesto de conflitos. É a terra dos indígenas, dos holandeses de Nassau, dos portugueses; o campo de batalha de Felipe Camarão, Henrique Dias e André Vidal de Negreiros. Uma história que, na longa duração, é feita de ódio, amor e desamor, de sangue e resistência, de violência e, fundamentalmente, de pirraça. A pirraça — de carnaval, frevo, chuva, suor e cerveja — de um povo que, apesar de tudo, continua a existir e a criar.
Nesse cenário, Wagner Moura se agiganta. Sua interpretação de Marcelo (ou Armando), o homem comum, professor universitário, cientista, tragado pela paranoia e pela perseguição, é de uma vulnerabilidade que espelha a do próprio cidadão brasileiro. Ele é o herdeiro de uma história que não consegue enterrar seus mortos e, por isso, é assombrado por eles. E se o cinema francês teve seu Jean-Paul Belmondo, o Brasil tem em Wagner Moura — no auge de sua forma — um ator capaz de encarnar as contradições de seu tempo (e de outros tempos) com uma força e uma verdade inegáveis. “O Agente Secreto” é um filme que nos confronta com o espelho de um país historicamente fraturado, um lembrete doloroso de que o esquecimento é um luxo que não podemos nos permitir, mas continuamos a fazê-lo numa dor sem fim. Mas dizem que há esperança no filme, que há esperança em 2026. E por falar nele, o famigerado 2026, logo aí, dizem que na virada tudo mudará, para que tudo continue no seu devido lugar. Feliz 26, brava gente que ainda lê.
A distribuidora norte-americana NEON Rated divulgou pôster internacional de “O Agente Secreto”, filme brasileiro dirigido por Kleber Mendonça Filho e estrelado por Wagner Moura. A nova arte rapidamente repercutiu nas redes sociais, onde internautas apontaram semelhanças visuais com a pintura “Operários”, de Tarsila do Amaral.
Brasília (DF) 06/08/2025 – O Presidente Lula recebe equipe do filme “O Agente Secreto”, no Palácio da Alvorada, e grupo de frevo. Foto: Valter Campanato/Agência Brasil.
