O serial killer Roger Abdelmassih, figura central de crimes chocantes, é um dos personagens abordados na nova série documental “Tremembé”, da Prime Vídeo, que estreou na última sexta-feira, 31. O ex-médico, renomado especialista em fertilização, ganhou notoriedade nacional após ser sentenciado por cometer 37 estupros contra pacientes em sua clínica.
A estilista Vana Lopes, que se tornou a primeira a denunciar Abdelmassih, é uma das vítimas que compartilhou seu trauma. Em seu depoimento, ela detalhou o primeiro contato com o agressor e as profundas sequelas que a violência deixou em sua vida.
“Eu era uma jovem bonita, vaidosa, estilista, vivia na Europa, sempre muito comunicativa e acostumada a receber elogios. Quando eu entrava em um lugar, era comum atrair a atenção dos homens. Nunca vi isso como algo agressivo, por isso não achei estranho quando o médico Roger Abdelmassih começou a me encarar”, contou, em dezembro de 2016, em um depoimento comovente à Marie Claire.
Vana buscava o auxílio do criminoso movida pela esperança de concretizar o desejo de ter um filho biológico. Casada há sete anos e mãe de uma filha adotiva, ela e o marido recorreram à reprodução assistida após dificuldades para engravidar de forma natural.
“Eu estava focada no meu objetivo e só conseguia pensar nos meus bebês. Nas consultas, ele fazia parecer que eu já estava grávida e desacreditava de tudo que os outros médicos haviam dito. Garantia que eu sairia dali com filhos. Para ele, nada era obstáculo”, seguiu no relato posteriormente reproduzido no livro Tremembé, do jornalista Ullisses Campbell.
A estilista descreve que as consultas eram repletas de grandes promessas. “Ele me perguntava: ‘Você já tem nome para as crianças?’. E eu: ‘crianças? Eu pensei que era só uma…’. ‘Você vai sair daqui com gêmeos!’, prometeu o médico. Saímos de lá já pensando em apelidos. Visualizávamos os bebês, dávamos nomes, criávamos personalidades para aquele sonho”.
Outro ponto de pressão era o alto custo dos tratamentos. Vana revelou que o processo de fertilização se aproximava do valor de um imóvel no litoral. Além disso, o médico insistia que as pacientes contratassem três tentativas.
“Ele nos colocou contra a parede: ‘Você prefere ver o mar ou o sorriso dos seus filhos?’. É claro que escolhi os meus meninos. Fomos direto à minha agência bancária e fechamos três tentativas de fertilização. Três! Ele praticamente exigia isso, alegando que diminuía a ansiedade da primeira tentativa. Às vezes me sinto uma idiota por não ter percebido. Ele me preparava para ter até quadrigêmeos, e eu visualizava tudo como se já estivesse grávida”, relembrou.
A passagem mais impactante do testemunho de Vana Lopes descreve o momento do estupro. Ela precisava ir à clínica diariamente para injeções hormonais. Após duas tentativas fracassadas (uma com altas doses e anestesia, e outra que resultou em uma perda gestacional inicial), a terceira vez foi marcada pela violência.
Após tomar uma medicação pré-procedimento e ser levada para a sala, Vana acordou e viu o médico abusando dela.
“Estava lúcida, mas completamente imóvel. Não conseguia mover um músculo nem pronunciar uma palavra. Minha mente estava confusa. Por um momento, achei que fosse sintoma da gravidez. Ao abrir os olhos, vi tudo: um monstro sobre mim, me violentando. Ele me virava e eu não conseguia reagir”, contou. “Fez sexo anal, vaginal, lambia meu rosto, fazia o que queria. Eu seguia paralisada. Quando terminou, o vi indo para o banheiro. Eu estava em estado de choque. Consegui me mover, vesti a roupa às pressas e desci as escadas tropeçando. Uma enfermeira me perguntou o que havia acontecido. Eu disse: ‘fui violentada’. Ela não acreditou ou fingiu não acreditar“, completou.
Após o crime, Vana foi levada ao hospital com dores intensas na barriga, onde foi constatado que ela estava à beira de uma infecção generalizada. “Durante o estupro anal, ele levou uma bactéria do ânus para a minha vagina, que estava sensibilizada pela inseminação. Como eu havia tomado hormônios para estimular os ovários, essa bactéria foi absorvida e se multiplicou. Em uma semana, se espalhou pelo corpo.”
A estilista teve que passar por uma cirurgia de emergência e perdeu as trompas e os ovários, além de “a esperança de ter um filho biológico”. O trauma do abuso levou Vana a se isolar e a se culpar, abandonando sua carreira. “Me autossabotei. Comia compulsivamente para ficar feia. Cheguei a pesar 150 quilos. Parei de ir a consultas médicas, deixei de visitar amigos, não saía de casa. Passei quatro anos trancada, sem sequer descer à portaria”, detalhou.
Na primeira vez que Vana Lopes buscou a delegacia para denunciar Roger Abdelmassih, ela não foi levada a sério pela polícia. “Relatei tudo ao delegado, que disse que eu estava delirando. ‘Ele é o médico das estrelas. Jamais faria isso’, disse o policial.”
Em 2009, com o surgimento de outras denúncias, ela retornou ao Departamento de Polícia com a cópia do boletim de ocorrência original. Na ocasião, descobriu que o registro havia desaparecido da delegacia, chocando a delegada.
O ex-médico foi inicialmente detido em 2009, mas conseguiu um habeas corpus. Em 2010, foi condenado a 278 anos. Quando seu habeas corpus foi revogado em 2011, ele se tornou foragido, fugindo para o Paraguai, onde viveu com sua família até 2014. Roger Abdelmassih foi finalmente localizado em Assunção por uma operação conjunta da Polícia Federal brasileira e a Secretaria Nacional Antidrogas do Paraguai.
Ele foi deportado e transferido para Foz do Iguaçu, de onde seguiu para o presídio de Tremembé, local onde permanece detido até hoje. Sua localização e prisão foram o resultado da incansável busca de Vana, que não descansou até que ele fosse capturado.
Vana Lopes faleceu em 28 de janeiro de 2023, vítima de câncer de mama. Ela dedicou parte de sua vida a criar um grupo de apoio para vítimas de abuso sexual. “A cada sorriso que recebo de uma vítima acolhida, é como se eu estivesse parindo uma nova criança. É muito bom aliviar a dor de alguém.”
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