O neoliberalismo, como corrente econômica e projeto político, é um fenômeno histórico que começou a se articular ainda no final da Segunda Guerra Mundial, em um contexto de reconstrução global e reação política ao Estado de bem-estar social, de redefinição geopolítica e disputa intelectual sobre os rumos do capitalismo global.
Embora o termo tenha sido usado de diferentes maneiras ao longo do século 20, ficou associado principalmente ao movimento liderado por economistas que buscavam reorganizar a economia sob bases mais “disciplinadas” e livres da interferência estatal, uma marca do programa de bem-estar social surgido ainda na década de 1880, na Alemanha de Otto von Bismarck, como espécie de alternativa ao liberalismo clássico e à ameaça do socialismo.
O surgimento e a consolidação do Projeto Neoliberal
O ponto de partida simbólico e teórico do neoliberalismo contemporâneo costuma ser associado à publicação de O Caminho da Servidão (The Road to Serfdom), escrito em 1944, por Friedrich Hayek. A obra atacava o socialismo e criticava fortemente as formas moderadas de intervencionismo estatal, como as políticas keynesianas que se tornaram predominantes após a Grande Depressão e que seriam centrais na reconstrução europeia do pós-guerra.
Hayek argumentava que qualquer extensão da intervenção do Estado na economia, mesmo com objetivos igualitaristas ou sociais, colocava em risco a liberdade individual. Para ele, a suposta “servidão” denunciada no livro incluía tanto o totalitarismo nazista quanto o planejamento econômico democrático praticado por partidos trabalhistas e social-democratas. Em 1944, seu alvo imediato era o Partido Trabalhista britânico, que defendia amplos programas de proteção social e nacionalização de setores estratégicos.
A obra de Hayek oferecia uma visão alternativa em um momento em que o keynesianismo e o Estado de bem-estar pareciam inquestionáveis. Apesar de minoritária naquele período, essa visão formaria a base de um movimento intelectual organizado que ganharia força nas décadas seguintes.
Ele se uniu a uma comunidade internacional que compartilhava de seu diagnóstico e defendia a nova doutrina econômica, de que participaram nomes como Milton Friedman, Ludwig von Mises e Karl Popper, conhecidos como a Sociedade de Mont Pèlerin, que o economista Perry Anderson descreve como “uma espécie de franco-maçonaria neoliberal”.
A missão da Sociedade era dupla: primeiro, combater a hegemonia keynesiana na economia, que via a política estatal e a intervenção como necessárias para garantir a estabilidade econômica; e, além disso, articular um novo projeto de capitalismo, baseado na defesa dos mercados livres, da disciplina monetária e da limitação radical da ação estatal. A influência intelectual e política desse projeto se tornaria mais visível a partir da década de 1970.
A crise dos anos 1970 e a oportunidade neoliberal
A década de 1970 foi marcada por um fenômeno que desafiou o keynesianismo: a estagflação, combinação de altas taxas de inflação com crescimento econômico fraco, algo que as políticas tradicionais não conseguiam resolver.
Em 1971, o presidente dos EUA, Richard Nixon, suspendeu a conversibilidade do dólar em ouro, que garantia uma certa estabilidade ao sistema financeiro internacional sob o acordo de Bretton Woods, em vigor desde 1944.
O fim da conversibilidade desvalorizou o dólar e marcou o início de uma era de volatilidade no câmbio, que evoluiu para uma inflação mundial de commodities. O choque do petróleo de 1973 intensificou o problema e abriu espaço para propostas alternativas.
Os governos se encontraram com déficits públicos, inflação doméstica e uma emissão de dólares descontrolada, que pressionava o sistema monetário global. Enquanto isso, no campo do trabalho, greves paralisavam a economia com as lutas trabalhistas nos EUA, no Reino Unido e na Europa, que buscavam melhores condições salariais diante da precariedade econômica.
O projeto neoliberal tinha como objetivos enfraquecer o sindicalismo e reformar os sistemas tributários para “incentivar os mais ricos” a investir na economia. Acreditava-se que as economias desenvolvidas só seriam reanimadas após a crise que se seguiu aos “anos de ouro” do capitalismo a partir do restauro das taxas de lucros para os produtores e de novos patamares de acumulação, em detrimento do trabalho, que deveria gerar desemprego estrutural para voltar a ser competitivo.
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No campo das políticas públicas, o neoliberalismo incentivava disciplina fiscal e austeridade no orçamento, sem gastos com políticas de bem-estar que garantissem direitos básicos, como saúde e educação.
As grandes experiências neoliberais ao redor do mundo logo começaram a aparecer. Embora suas bases tenham sido formuladas no hemisfério Norte, o neoliberalismo jamais foi um fenômeno exclusivamente europeu ou norte-americano. Ele foi testado, adaptado e implementado em diferentes regiões, muitas vezes com graus variados de radicalidade, como “laboratórios históricos” do projeto neoliberal.
Chile: a experiência pioneira e radical
O Chile sob Augusto Pinochet (1973–1990) foi o primeiro caso de aplicação sistemática do programa neoliberal. Os chamados Chicago Boys, economistas treinados por Friedman, implementaram:
- ampla desregulação econômica;
- privatizações agressivas, inclusive da previdência;
- repressão brutal aos sindicatos;
- abertura comercial irrestrita;
- desemprego massivo como instrumento disciplinador.
A combinação de autoritarismo estatal e liberdade irrestrita aos mercados transformou o país em vitrine neoliberal. A experiência despertou enorme interesse entre formuladores de políticas, especialmente no Reino Unido.
Reino Unido: o modelo “puro” de Thatcher
Com a eleição de Margaret Thatcher, em 1979, o neoliberalismo chegou pela primeira vez ao centro do capitalismo avançado. Suas medidas incluíram:
- controle rígido da emissão monetária;
- elevação das taxas de juros;
- cortes drásticos nos impostos dos mais ricos;
- liberalização dos mercados financeiros;
- desmantelamento sistemático dos sindicatos;
- cortes profundos nos gastos sociais;
- privatização de habitações públicas e de serviços essenciais como gás, água, eletricidade e siderurgia.
Thatcher transformou o país e consolidou o neoliberalismo como doutrina dominante.
Estados Unidos: Reagan e a variante norte-americana
A partir de 1980, Ronald Reagan implementou uma versão própria do neoliberalismo, que compartilhava elementos centrais com o modelo inglês, mas com particularidades:
- cortes tributários massivos para os mais ricos;
- repressão a movimentos trabalhistas (como a greve dos controladores de voo);
- juros altos do Federal Reserve;
- grande expansão militar financiada por déficits, uma espécie de “keynesianismo militar”.
Apesar da retórica anti-Estado, o governo Reagan expandiu gastos públicos em áreas estratégicas, especialmente defesa.
Bolívia: o laboratório do “tratamento de choque”
Em 1985, Jeffrey Sachs aplicou um programa de estabilização ultrarrápido para combater hiperinflação, que envolveu:
- congelamento imediato de preços;
- privatizações;
- abertura comercial;
- eliminação de subsídios.
Esse modelo se tornaria referência para as transições pós-soviéticas.
Governos de esquerda convertidos ao neoliberalismo
Um dos fenômenos mais importantes dos anos 1980 e 1990 foi a adoção do neoliberalismo por partidos social-democratas:
- Na França de Mitterrand, após tentativa inicial de políticas keynesianas, mudou para austeridade, estabilidade monetária e cortes sociais.
- Na Espanha de González, políticas monetaristas e altas taxas de desemprego foram aceitas como parte da disciplina neoliberal.
- Na Austrália e na Nova Zelândia, governos trabalhistas implementaram programas mais radicais que os conservadores, responsáveis por desestruturar o Estado de bem-estar.
A conversão social-democrata ampliou a hegemonia neoliberal.
Pós-comunismo: o experimento mais profundo
No colapso da União Soviética, economistas influenciados por Hayek e Friedman introduziram programas de privatização acelerada, desregulação e abertura econômica. Países como Rússia e Polônia viveram:
- quedas drásticas na produção;
- explosão da desigualdade;
- formação de oligarquias econômicas;
- perda de proteção social para amplas parcelas da população.
Foi uma aplicação ainda mais radical do que no Ocidente.
O maior triunfo do projeto neoliberal talvez tenha sido a disseminação da crença de que a lógica de mercado é inevitável e de que “não há alternativa” viável para ela.
Apesar disso, o colapso neoliberal se tornou palpável à medida que se seguiram múltiplas crises econômicas, de 1980 a 2016, marcadas por desregulação financeira, precariedade nos índices de satisfação e desenvolvimento social, fragilidade do sistema público e da política trabalhista, esgotamento dos recursos naturais e outras contradições internas de um projeto que cria as condições de sua própria ruína.
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