Nos últimos anos, um conceito ganhou força nas discussões sobre economia, tecnologia e poder global: o tecnofeudalismo. Proposto pelo economista Yanis Varoufakis em seu livro Technofeudalism: What Killed Capitalism (2023), o termo descreve um novo regime — supostamente substituto do capitalismo tradicional — centrado na predominância das plataformas digitais, na ampliação da infraestrutura de nuvem e na extração de “renda da nuvem” (cloud rent), em vez de ter a base de seus superlucros na produção mercantil e na manufatura.
Para Varoufakis, as grandes corporações de tecnologia (as chamadas “big techs”) operam agora como senhores feudais de um território invisível: a internet e a nuvem. Nessa lógica, usuários e trabalhadores plataformizados seriam os “servos da nuvem”, entregando dados, atenção e trabalho digital, sem remuneração justa nem autonomia.
Até então, essa era uma tese conceitual e crítica. Mas dados recentes mostram que algumas das transformações descritas por ele já se concretizaram, sobretudo na concentração de mercado na infraestrutura da nuvem e no crescimento do trabalho plataformizado.
Segundo Varoufakis, o surgimento do tecnofeudalismo não é um acidente isolado, mas resultado de uma série de transformações estruturais e conjunturas históricas que aceleraram nas últimas décadas, como a expansão do que ele chama de “capital em nuvem”, que transforma a infraestrutura física do capital (fábricas, máquinas e outros bens fixos) em redes digitais formadas por algoritmos de captura de dados, servidores de armazenamento e clouds de informações usadas para criar novos valores de uso na economia global.
Após a crise financeira de 2008, parte do sistema financeiro tradicional ruiu, afirma Varoufakis, e a recuperação sustentada pelos Estados centrais intensificou fluxos de investimento já em curso no campo digital.
A acumulação de valor pelas empresas de tecnologia disparou nas últimas décadas, especialmente após 2008, concentrando riqueza, dados e poder nas mãos de um pequeno número de corporações.
E a lógica de acumulação também mudou: plataformas como a Amazon, por exemplo, cobram “aluguel digital” de vendedores e exercem controle absoluto sobre quem vende, como vende e a que preço. A economia plataformizada, que reúne uma ampla gama de produtos transformados em serviços (entregadores, motoristas, freelancers etc.), depende de algoritmos, da atenção de usuários e cria “valor” a partir de métricas instáveis, controladas por sistemas algorítmicos que, em seu ponto final, são comandados por pequenos grupos de magnatas do tecnofeudo.
Recentes relatórios de mercado mostram que o setor global de infraestrutura de nuvem (serviços IaaS) atingiu US$ 171,8 bilhões em 2024, um crescimento de 22,5% sobre 2023. Deste mercado, as três maiores empresas do setor — Amazon Web Services (AWS), Microsoft Azure e Google Cloud — controlam entre 62% e 66% do mercado global de infraestrutura de nuvem.
A analogia feudal se tornou, assim, uma metáfora para os oligopólios e monopólios globais da concentração de poder econômico e político, associados a uma lógica de rentismo que mina direitos conquistados por décadas de reivindicações trabalhistas e lutas sociais, transformando o trabalhador em simples prestador de serviços informal.
O novo regime de extração do capital, baseado em uma forma renovada de acumulação primitiva — marca histórica do capitalismo — pode ser observado de maneira concreta a partir dos índices de trabalho plataformizado em países como o Brasil, na periferia dos sistemas digitais-informacionais.
Segundo dados de 2024 do módulo “Trabalho por meio de Plataformas Digitais” do IBGE (PNAD Contínua), o Brasil tinha cerca de 1,7 milhão de pessoas ocupadas em trabalhos mediados por aplicativos e plataformas digitais de serviços (transporte, entregas, serviços gerais etc.) no terceiro trimestre de 2024, contingente que representa até 1,9% da população ocupada no setor privado.
Entre 2022 e 2024, o número de trabalhadores plataformizados cresceu 25,4%, com 71,1% dos trabalhadores em situação informal, segundo a Agência Brasil.
Em média, a jornada semanal entre plataformizados é maior do que a dos não plataformizados, mediada por uma lógica de “empreendedorismo pessoal” e por métricas quantitativas de renda baseadas na produtividade imediata.
Apesar de sua força retórica e alcance conceitual, a hipótese de Varoufakis não é unânime.
Alguns analistas argumentam que o que se vê hoje não seria um rompimento com o capitalismo, mas uma intensificação de suas dinâmicas de exploração e concentração, adaptadas à nova era digital — uma forma de tornar o capitalismo ainda mais “antropofágico” em suas bases.
A analogia, além disso, parece problemática para alguns teóricos, já que o feudalismo, como regime material de uma época específica, envolvia condições particulares de relações estamentais de classe (não baseadas nos mesmos preceitos do capitalismo moderno, cuja marca é a transformação do trabalho em mercadoria), propriedade e mobilidade social.
Há também quem questione se o “cloud capital” realmente eliminou mercados e se o sistema depende predominantemente de extração de renda (rents) e não de produção.
De forma geral, Varoufakis aponta, como possibilidades de fugir do paradigma do tecnofeudalismo, a criação de marcos legais que limitem o poder absoluto das plataformas sobre dados, infraestrutura e rentismo; a reinvenção da internet como bem comum, de acesso público e com governança coletiva; e a formulação de mecanismos que evitem a concentração de renda, permitindo redistribuição, justiça social e financiamento de políticas públicas.
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