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‘O teatro que me agrada é aquele que toca nas feridas sociais’, afirma Kike Barbosa

by admin

O Laboratório de Pesquisa e Montagem da Cômica Cultural estreia sua mais recente produção, a peça Os Sete Gatinhos, uma obra de Nelson Rodrigues. O espetáculo, dirigido por Fernando Kike Barbosa, mergulha no universo rodriguiano para dissecar os tabus, a hipocrisia e as complexas relações familiares da sociedade brasileira.

As apresentações acontecem nesta quarta-feira (17) e quinta-feira (18), às 20h, na Casa de Espetáculos (Rua Visconde do Rio Branco, 691) e os ingressos podem ser adquiridos antecipadamente pelo Sympla.

Os Sete Gatinhos é uma comédia de costumes com traços de tragédia e um dos textos mais potentes e provocativos do autor, Nelson Rodrigues. A trama central expõe a degradação moral da família Noronha, que se sustenta através da prostituição das filhas, enquanto, paradoxalmente, tenta preservar a “pureza” da caçula, Silene. A montagem proposta busca um olhar contemporâneo sobre a obra, mantendo a crueza e o humor ácido, que são marcas registradas do dramaturgo, e destacando a atemporalidade das críticas sociais e dos conflitos humanos.

Em entrevista ao Brasil de Fato RS, diretor fala da peça e do atual contexto da cultura no país
Em entrevista ao Brasil de Fato RS, diretor fala do processo de criação da peça Os Sete Gatinhos e de sua trajetória no teatro | Crédito: Ariel Aguiar

O diretor Fernando Kike Barbosa, que assina também a trilha sonora, é ator, dramaturgo e diretor com experiência em teatro, cinema e televisão. Ao longo de sua carreira, recebeu diversos prêmios, incluindo o Prêmio Açorianos de melhor ator-coadjuvante por Dr. Fausto (1994) e melhor ator por Os Crimes da Rua do Arvoredo (1999). Como diretor, foi indicado ao Prêmio Açorianos por Álbum de Família (1996) e recebeu seis indicações, incluindo melhor direção e espetáculo, por Dorotéia (1999).

O Laboratório de Pesquisa e Montagem da Cômica Cultural é um núcleo de experimentação cênica concebido como uma oficina de criação, ação e compartilhamento, partindo das vivências e expectativas dos participantes. Durante o processo, os alunos realizam exercícios de corpo e voz, experimentos cênicos e textuais, trabalhando a sensibilidade e a resistência física.

O diretor Fernando Kike Barbosa conversou com o Brasil de Fato RS.

Confira entrevista.

Brasil de Fato RS: A montagem de Os Sete Gatinhos, sob sua direção, é descrita como uma obra que propõe um olhar contemporâneo sobre o texto, mas mantendo o humor ácido e a crueza que são marcas de Nelson Rodrigues. Qual foi o maior desafio em equilibrar a atemporalidade dos conflitos humanos com a necessidade de dissecar a hipocrisia e os tabus da sociedade brasileira de forma relevante para o público atual?

Fernando Kike Barbosa: Montar Nelson Rodrigues é sempre um grande desafio uma vez que sua dramaturgia de fundo realista transita entre gêneros: tragédia, comédia, melodrama, farsa. Seus personagens são intensos, derramados, mas não caricatos, pelo contrário, são profundamente humanos e únicos. Por isso, considero que o trabalho dos atores com o texto rodriguiano é um dos maiores desafios no processo de montagem.

A ideia é investir na força do texto e dos atores para que o público contemporâneo se reconheça nas situações e perceba o quanto esses mecanismos ainda permanecem vivos. Outro desafio é de não transformar o texto em uma peça de época, mas também de evitar atualizações artificiais.

O texto explora a degradação moral da família Noronha, que se sustenta pela prostituição das filhas, enquanto tenta preservar a “pureza” da caçula, Silene. Como a direção abordou essa tensão inerente entre a comédia de costumes e os traços de tragédia presentes na obra rodriguiana?

O próprio Nelson indica o caminho através da sobreposição de momentos cômicos, e até mesmo patéticos, com momentos de violência e desconforto. Como diretor oriento os atores a explorarem essa tensão nas suas performances, a entenderem o caráter móvel e contraditório das personagens. São seres trágicos e cômicos ao mesmo tempo. Nesse sentido, manter o humor ácido e o desconforto característicos de Nelson é fundamental para expor a hipocrisia e os tabus de forma contundente.

Além da direção, tu és responsável pela trilha sonora do espetáculo. De que maneira a sua visão para a direção influenciou as escolhas e a criação da sonoridade, e como a música contribui para enfatizar a complexidade moral da família Noronha?

Nelson Rodrigues sempre me remete à música brasileira, mas também aos ritmos latinos e caribenhos. Dividi a pesquisa da trilha por temas: religiosidade, malandragem e suspense. Assim, existe uma mistura de sonoridades como samba, canto gregoriano e bolero. Tamborim, atabaque, cuica revezam com contrabaixos, violinos e violoncelos.

A peça tem uma narrativa de suspense, assentado na eminência da violência. Nesse sentido a trilha busca construir essa atmosfera de tensão crescente através da alternância entre silêncios e música incidental com bases sonoras de cordas, violinos e violoncelos.

Os Sete Gatinhos é uma comédia de costumes com traços de tragédia e um dos textos mais potentes e provocativos do autor, Nelson Rodrigues – Foto: Fernando Kike Barbosa

Os Sete Gatinhos é o resultado de um processo do Laboratório de Pesquisa e Montagem da Cômica Cultural. Como a dinâmica e a pesquisa desse laboratório contribuíram para a especificidade desta montagem?

Como diretor sempre busco a troca com os atores, a colaboração, a escuta, permitindo que diferentes perspectivas e ideias se integrem no processo criativo. Essa troca enriquece a leitura da obra. Como já dito, a escolha do texto foi uma decisão coletiva. O figurino foi criado por uma das atrizes da montagem (Betânia Rodrigues) em consenso com o grupo. É claro que existe a minha experiência como diretor e ator na condução do processo e, nesse caso, como bom conhecedor da obra de Nelson.

Desde 2017, tu atuas como orientador do Laboratório de Pesquisa e Montagem da Cômica Cultural, dirigindo espetáculos de conclusão, como Amores Obsessivos. Como tem sido esse processo?

Eu gosto muito de conduzir oficinas de montagem de longa duração. Faço isso desde o princípio da minha caminhada no teatro. O Laboratório de Pesquisa tem duração de 9 meses em média e esse tempo estendido possibilita um maior aprofundamento na formação dos atores, no entrosamento do grupo e na estruturação da montagem. Cada processo é único e cada grupo tem sua dinâmica própria.

O desafio é deixar o processo falar e entender o que aquele grupo específico solicita e aporta para a construção da montagem. Esse ano, a ideia de montar Os Sete Gatinhos foi uma decisão do grupo. Da mesma forma, o espetáculo Homem Mãe, uma adaptação teatral que fiz do romance O Filho de Mil Homens, do escritor Valter Hugo Mãe, nasceu da sugestão de uma participante e foi abraçada pelo grupo.  

O Laboratório utiliza tanto textos literários para o conhecimento do gênero teatral quanto obras canônicas fundamentais para o cenário dramatúrgico. Como tu selecionas e incorpora esses textos no processo de criação, e qual é a importância da pesquisa na formação e montagem?

A escolha de um texto para montar é sempre um dilema. Nos últimos anos tenho gostado muito de trabalhar com adaptação de textos literários, como foi o caso do Homem Mãe e O curioso Caso do Cão no Meio da Noite. Para pesquisa é muito instigante transformar uma narração em diálogos e ação.

O texto literário oferece muitas possibilidades de criação e nesse sentido torna o processo estimulante. De modo geral, eu apresento algumas alternativas para o grupo no início do processo, de textos diferenciados entre si, dramatúrgicos e literários, e acabamos decidindo no coletivo, qual caminho seguir.

Em 2015, tu dirigiste Homem Mãe como montagem de conclusão, a partir de uma adaptação do livro O Filho de Mil Homens, de Valter Hugo Mãe, que agora está no cinema. Como foi essa criação?

Na época eu havia descoberto o Valter Hugo Mãe e estava devorando suas obras. No início do processo, ainda sem saber o que montar, emprestei o livro O Filho de Mil Homens para uma das alunas do curso, a Katia Marko. Ela leu o romance, se apaixonou e me sugeriu de fazer uma adaptação. Apresentamos a ideia ao grupo e foi aceita.

Ao longo do processo, eu ia escrevendo as cenas à medida que avançávamos nos ensaios e na história. A montagem participou do Projeto Novas Caras e rendeu o Prêmio Açorianos de Ator Revelação para Emílio Speck e a indicação de Atriz Revelação para Gabriela Magagnin. Homem Mãe rendeu várias temporadas, ao longo de 8 anos, sempre com excelente retorno de público.

Ao longo da carreira, tu acumulaste diversos prêmios, como o Açorianos de melhor ator-coadjuvante por Dr. Fausto e de melhor ator por Os Crimes da Rua do Arvoredo. Quais foram os aprendizados mais significativos que tu levaste da experiência como ator para a sua atuação como diretor e dramaturgo?

Comecei a minha formação teatral na Terreira da Tribo, uma escola que preza a criação coletiva e onde erámos estimulados a nos envolver em todos os aspectos da produção de uma obra teatral. Na Terreira, além do trabalho de ator, pude me exercitar na direção e na criação de dramaturgias, e essas experiências me acompanham e se refletem no meu modo de criar.

A montagem proposta busca um olhar contemporâneo sobre a obra, mantendo a crueza e o humor ácido, que são marcas registradas do dramaturgo – Foto: Fernando Kike Barbosa

Tens um histórico importante como diretor e dramaturgo, incluindo a escrita e direção de Pequenas Violências – Silenciosas e Cotidianas (que venceu o Prêmio Braskem 2014), e a coautoria de Circo de Horrores e Maravilhas. Quais temas ou questões sociais o motivam a escrever e dirigir obras que, por vezes, tratam de realidades cruas e cotidianas, como sugerido pelo título Pequenas Violências?

Eu percebo que o teatro que me agrada é aquele que toca nas feridas sociais, que reflete de forma crítica sobre seu tempo, suas paixões, misérias e conflitos. Pequenas Violências surgiu de uma perplexidade: a notícia sobre um homem que entrou numa escola do Rio de janeiro e disparou de forma aleatória contra crianças, matando 12 delas e depois cometendo suicídio.

A notícia impactante se configurou para mim como um sintoma do nosso tempo, um tempo doentio, e com muitas camadas de realidade sobrepostas. E a peça surgiu como um desabafo, um vômito, sobre o mal-estar da nossa civilização.

Recentemente, fiquei novamente muito mexido com a história trágica do rapaz solitário e miserável que entrou na jaula de uma leoa e foi morto pelo animal. Me deu vontade de escrever uma peça sobre esse caso, entendendo que, em certa medida, o gesto do rapaz representa um grito de socorro dos excluídos, e o desfecho terrível do acontecimento, um fracasso coletivo da nossa sociedade. Tenho juntado material sobre o caso, reportagens, entrevistas, comentários de psicólogos e comentários dos feeds das redes sociais, pensando em transformar esses materiais em dramaturgia.

Tu co-dirigiste e atuaste em As Malcriadas (2001) e dirigiu Álbum de Família (1996) e Dorotéia (1999), recebendo indicações importantes ao Prêmio Açorianos. Qual desses trabalhos como diretor foi o mais desafiador ou marcante em sua evolução artística?

Creio que, de longe, Pequenas Violências foi meu trabalho mais desafiador, pelo fato de dirigir meu próprio texto. Por outro lado, a peça não possui rubricas, nenhuma indicação de tempo, espaço ou intenção nas falas das personagens. Comecei o processo literalmente no escuro e não tinha a menor ideia de como o trabalho resultaria. Mas foi com essa experiência que aprendi de vez ouvir o processo.

Com a intenção de experimentar a força do texto sem o auxílio da visualidade, começamos os ensaios trabalhando com as luzes apagadas. Aos poucos, conforme a necessidade, fomos introduzindo a iluminação. A solução foi encontrada rapidamente para a encenação: utilizar apenas lanternas para iluminar – e isso definiu a estética do espetáculo de forma radical e inovadora.

Ficha técnica:

Direção: Fernando Kike Barbosa;
Dramaturgia: Nelson Rodrigues;
Elenco: Betânia Rodrigues, Joana Sousa, Kassie Ritzel, Loise Smaniotto, Tatiane Pires, Ofélia Ferretjans, Dmitri Rodrigues, Christian Tombini, Eduardo Ezequiel e Roberto Caldera;
Iluminação: Fabi Santos;
Trilha Sonora: Fernando Kike Barbosa;
Cenografia: Cleia Bertinetti;
Projeções: Ned Velloso;
Produção: Gustavo Saul;
Realização: Cômica Cultural;
Duração: 75 minutos.

Serviço

Apresentação da peça Os Sete Gatinhos

Quando: 17 e 18 de dezembro

Onde: Casa de Espetáculos (Rua Visconde do Rio Branco, 691)

Horário: 20h

Ingressos: R$ 50,00 (inteira) e R$ 25,00 (meia entrada – estudantes, classe artística, sêniors, doadores regulares de sangue, PcDs e alunos da Cômica Cultural)

Link: https://www.sympla.com.br/produtor/comicacultural

Classificação indicativa: 14 anos

Créditos

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