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PF quer arquivar inquérito sobre assassinato de servidor da Funai

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A Polícia Federal sugeriu à Justiça Federal do Amazonas que arquive a investigação sobre o assassinato do indigenista Maxciel Pereira dos Santos, 35, ocorrido em 2019. O crime permanece impune, sem que PF e Ministério Público Federal, o MPF, tenham indicado ao Judiciário os autores ou mandantes.

Embora menos midiático, o caso de Maxciel, segundo investigações anteriores da própria PF, tem conexões com as mortes do indigenista Bruno Pereira e do jornalista Dom Phillips.

O relatório com o pedido de arquivamento, obtido com exclusividade pelo Intercept Brasil, foi feito no último dia 15 de setembro. O documento será apreciado pelo MPF e, após a manifestação, analisado pela Justiça Federal.

Em 6 de setembro de 2019, Maxciel saiu de moto da casa de um familiar em Tabatinga, no Amazonas, onde passaria a noite. Ele transportava sua esposa e uma filha pequena. No centro da cidade, uma moto se aproximou e um dos ocupantes sacou uma arma e disparou na cabeça do indigenista, que morreu no local.

O crime ocorreu num momento de grande tensão entre os servidores da Fundação Nacional dos Povos Indígenas, a Funai, na região, pois as bases de fiscalização da Terra Indígena Vale do Javari estavam sob ataque de invasores – foram pelo menos oito atentados com armas de fogo desde 2017.

Ao mesmo tempo, o órgão passava por um processo de esvaziamento e ocupação de seus principais cargos por nomes de fora dos quadros da fundação, como militares e policiais. O então presidente Jair Bolsonaro havia dito, durante a campanha eleitoral do ano anterior, que iria dar “uma foiçada no pescoço” da Funai. 

Investigação em marcha lenta

Poucos dias antes do assassinato, Maxciel havia participado de uma grande apreensão de peixes e tracajás retirados ilegalmente da terra indígena por pescadores clandestinos.

Amigo de Bruno Pereira, Maxciel era conhecido na região como um dos mais ativos agentes da Funai na fiscalização e repressão aos crimes ambientais na terra indígena, vizinha de Tabatinga, em operações feitas em parceria com o Ibama e o Exército.

Maxciel tinha mais de 12 anos de trabalho na Funai, primeiro como prestador de serviços (de 2007 a 2012) e depois como servidor comissionado (de 2012 a 2017). De 2017 até sua morte, voltou a prestar serviços ao órgão indigenista. Na época do crime, ele aguardava a publicação de uma portaria em Diário Oficial para assumir “relevante cargo comissionado” na Funai, segundo um ofício encaminhado pelo órgão à PF.

A investigação sobre o assassinato foi feita inicialmente pela Polícia Civil do Amazonas. Mas, quatro dias depois, a partir de provocações da Funai e do MPF, a PF abriu o inquérito. Ao longo dos três primeiros anos, a autoria do crime permaneceu uma incógnita e a investigação caminhava a passos lentos, quase caindo no esquecimento, até junho de 2022, quando Bruno e Dom foram assassinados por pescadores ilegais na calha do rio Itaquaí, próximo a Atalaia do Norte, no Amazonas.

O duplo assassinato causou comoção nacional e internacional e chamou a atenção para o caso Maxciel. Em 2023, o inquérito ganhou impulso com a chegada do delegado Francisco Badenes, lotado na PF em Brasília, que também assumiu a investigação do caso Bruno e Dom e outras apurações relativas ao mesmo tema, além de uma chacina praticada por policiais militares no interior do Amazonas que ficou conhecida como “Massacre do Rio Abacaxis”.

No caso Maxciel, a PF tomou diversos depoimentos e fez uma completa reavaliação dos indícios que havia recolhido até então. Nessa fase da apuração, a PF estabeleceu pela primeira vez, em relatório de 2024, uma suposta relação entre as mortes de Maxciel, Bruno e Dom.

De acordo com o relatório, o possível elo seria o comerciante colombiano Rubens Villar Coelho, conhecido como Colômbia. No caso Bruno e Dom, ele foi denunciado e se tornou réu, em julho último, sob a acusação de ser o mandante do duplo assassinato. O processo ainda está pendente de julgamento.

No caso Maxciel, a PF localizou uma testemunha que disse ter presenciado uma reunião, que incluiu alguns dos mesmos pescadores que depois seriam os responsáveis pelo assassinato de Bruno e Dom, como Amarildo da Costa de Oliveira, o Pelado, na qual teria sido planejado o assassinato de Maxciel. A testemunha apontou Colômbia como o mandante, pois ele estaria sofrendo prejuízos com as apreensões de peixes comandadas por Maxciel.

Diversos depoimentos de pescadores e funcionários da Funai prestados à PF apontaram que Colômbia financiava a atividade de pescadores em toda a região, mediante “adiantamentos” que depois eram abatidos na hora da compra dos peixes.

Uma organização criminosa internacional

Em pelo menos um de seus depoimentos, Colômbia reconheceu que comprava pescado de inúmeros pescadores e que financiava expedições para pescarias com gelo e combustíveis e, às vezes, motores de barco na forma de “adiantamentos”, mas negou saber que os peixes tinham a terra indígena como origem. Por outro lado, admitiu que “não costuma cobrar documentação de regularidade de origem”.

No relatório de 2024, a PF descreveu as atividades de uma “organização criminosa armada transnacional” que atuava em toda a região supostamente liderada por Colômbia e seu braço direito, o pescador Jânio Freitas. A PF apontou que os ataques às bases de fiscalização da Funai ocorridos a partir de 2017 têm como “suspeitos os membros da organização criminosa liderada por Colômbia”.

“O teor dos documentos descritos nas alíneas anteriores converge no sentido de apontar que a mesma Orcrim também é responsável pela execução do indigenista Maxciel Pereira dos Santos. Isto pelo mesmo motivo que gerou a execução de Bruno e Dom: o prejuízo que as apreensões das embarcações dos pescadores ilegais [geravam], motivada pela atividade de fiscalização dos servidores da Funai: Maxciel e Bruno”, diz o relatório da polícia obtido pela reportagem.

A PF também descobriu que, em fevereiro de 2019, ou seja, apenas sete meses antes da execução de Maxciel, um irmão do assassino de Bruno e Dom, o pescador Pelado, Oseney da Costa de Oliveira, conhecido como Dos Santos, registrou uma ocorrência na Delegacia de Polícia Civil de Atalaia do Norte contra Maxciel por supostas “vistorias irregulares” que estariam “constrangendo a todos, inclusive seu pai”.

A PF concluiu que o registro era “inverídico” e os policiais que acompanham as ações de fiscalização de Maxciel “atestaram a lisura do seu procedimento”. Dos Santos chegou a ser acusado pelo MPF de envolvimento no assassinato de Bruno e Dom, mas depois seu nome foi retirado do processo a partir de decisão do Tribunal Regional Federal da 1ª Região.

No mesmo relatório de 2024, a PF  considerou “bem delineada” a motivação do crime contra Maxciel “e seus possíveis mentores intelectuais”. Contudo, apontou que havia a necessidade de realizar diligências sigilosas “no sentido de se identificar o autor dos disparos fatais”.

Naquela fase da apuração, apareciam com mais força quatro nomes diretamente envolvidos na execução do servidor da Funai. Um deles era um conhecido assassino de aluguel que operava na tríplice fronteira Brasil-Peru-Colômbia e que jamais foi localizado pela PF. Seu paradeiro é indefinido até o momento.

Em setembro de 2024, contudo, o delegado Badenes foi retirado da condução de todos os inquéritos relativos ao Vale do Javari, incluindo o caso Maxciel. O Intercept apurou que Badenes agora é alvo de um Procedimento Administrativo Disciplinar na PF, ainda em tramitação e sem decisão final.

No ano passado, organizações de indígenas e indigenistas, como a União dos Povos Indígenas do Vale do Javari e o Conselho Indigenista Missionário, manifestaram contrariedade com o afastamento de Badenes. Em nota, as entidades apontaram que a investigação sobre o crime contra Maxciel “teve avanço significativo após a nomeação do delegado Francisco Badenes. À frente do caso, o delegado atuou de forma comprometida, incansável e técnica, mesmo com todas as dificuldades inerentes ao caso”.

A investigação da PF sobre o assassinato foi, então, repassada à responsabilidade de outro delegado. O inquérito, por fim, não indiciou Colômbia por qualquer ligação com o crime nem acusou diretamente autores do assassinato.

No relatório sigiloso de 15 de setembro último, ao qual o Intercept teve acesso, o delegado Igor de Souza Barros reconheceu que há, no inquérito, menção sobre Colômbia como “provável mandante da execução” em razão “das atividades de fiscalização e repressão a ilícitos na região, desempenhadas pela vítima”. O delegado, porém, escreveu não ter encontrado provas a esse respeito.

“Destaca-se que foram analisados extratos telefônicos da vítima e de possíveis integrantes da organização criminosa atribuída a Colômbia. Ademais, houve afastamento de sigilo de diversos terminais telefônicos relacionados aos suspeitos. Entretanto, tais medidas restaram infrutíferas, seja pela ausência de dados cadastrais consistentes fornecidos pela operadoras, seja pela inexistência de vínculos diretos capazes de indicar, com segurança, os autores materiais e eventuais mandantes”, escreveu o delegado.

Sobre os possíveis executores, o delegado apontou que eles “encontram-se mortos ou desaparecidos, circunstância que inviabilizou a tomada de novos depoimentos e a confirmação das versões apresentadas pelas testemunhas”.

“Verifica-se que, apesar das robustas diligências investigativas, não se logrou êxito na individualização das condutas, tampouco na formação de um conjunto probatório mínimo que sustente eventual oferecimento de denúncia. A morte e o desaparecimento dos principais investigados inviabilizam o prosseguimento das apurações e a obtenção de novos elementos”, diz o relatório.

‘Que a memória de Maxciel não seja sufocada’

A família de Maxciel já reage à tentativa de arquivamento. Em petição ao Ministério Público Federal, a família aponta que “há nos autos uma enormidade de elementos – depoimentos, informações de inteligência policial e interconexão com outras mortes na região com a mesma motivação – que apontam razões concretas pelas quais Colômbia (Rubens Villar Coelho), ainda vivo, foi o mandante do homicídio premeditado de Maxciel”.

A petição foi subscrita pelos advogados Thais Rego Monteiro e Marcelo Feller, do escritório Feller Advogados, de São Paulo, que atua no caso sem remuneração.

“Não se vislumbra razão jurídica fática e lógica para que, depois de todos os elementos colhidos nesta investigação – resumidos acima – sobrevenha o arquivamento desta investigação em relação ao mandante do homicídio de Maxciel, indicado desde o início como sendo Rubens Villar Coelho, vulgo Colômbia, que igualmente e pelas mesmas razões determinou as mortes de Bruno Pereira e Dom Philips”, diz a petição dos advogados.

Ao Intercept, Thais Monteiro disse que ficou surpresa com a manifestação da PF para que a investigação seja arquivada: “Realmente é espantoso, num relatório final em um caso como esse, constar uma sugestão, ao MPF, para o arquivamento, quando a investigação alcançou elementos de forte convicção especialmente sobre o mandante (com depoimento inclusive de testemunha protegida)”.

“A prova colhida aponta que se trata do mesmo mandante dos assassinatos de Bruno e Dom. A sugestão do delegado federal, que foi designado recentemente para esse caso, ou põe em descrédito a própria investigação feita pela Polícia Federal ao longo de anos ou mostra grave equívoco na leitura dos autos. E digo, conhecendo os autos, que a investigação feita foi profunda”, diz Monteiro.

Inclusive, poucos dias antes do pedido de arquivamento, a família de Maxciel já havia manifestado, em carta enviada à PF, sua contrariedade com o atual andamento da investigação. Na carta, os familiares da vítima (mãe, pai, sete irmãos e uma filha) protestaram contra a substituição do delegado da PF que, até setembro de 2024, chefiava a investigação, Francisco Badenes, e lamentaram a “falta de respostas concretas da investigação” desde então.

“Pedimos que esta carta seja apresentada na investigação para que os responsáveis tenham conhecimento da nossa voz, da nossa dor e da nossa insistência em não deixar o caso ser esquecido. É um apelo para que retomem as diligências, que enfrentem os fatos com coragem e compromisso e que dêem uma resposta à altura da gravidade desse crime. Ainda acreditamos que a justiça pode ser feita, mas o tempo que passa sem providências tem sido cruel. É insuportável que a impunidade se imponha pela falta de continuidade e de empenho”, escreveram os familiares na carta entregue à investigação.

“Não pedimos nada além do que é direito de qualquer cidadão: que as autoridades façam seu trabalho com seriedade e celeridade, que busquem a verdade com a mesma determinação que vimos em parte do andamento do inquérito, e que a memória do Maxciel não seja sufocada pela inércia, ainda mais quando lembro que tudo o que aconteceu foi porque ele estava fazendo seu trabalho de forma correta e honesta”, diz o texto.

Viúvas de Dom e Bruno se solidarizam

Procuradas pelo Intercept Brasil, as viúvas de Bruno e Dom, respectivamente a antropóloga Beatriz de Almeida Matos e a designer Alessandra Sampaio, manifestaram solidariedade à família de Maxciel e pediram a continuidade das investigações.

“Vejo com preocupação e indignação a possibilidade de arquivamento do caso do Maxciel, nosso amigo, e colega de trabalho de Bruno. Precisamos saber quem são os responsáveis e estes devem ser punidos. Toda minha solidariedade à família de Maxciel”, disse Beatriz.

“Deve ser muito duro ver o arquivamernto de um processo que envolve o assassinato de uma pessoa que amamos. Cuidar da memória de quem se foi violentamente e lidar com o luto envolve ver a justiça acontecendo. Todo meu carinho à família de Maxciel” escreveu Alessandra, que preside o Instituto Dom Phillips, criado após os assassinatos de 2022 para desenvolver projetos educativos, voltados em especial para os povos indígenas.

A Polícia Federal foi procurada nesta quarta-feira (5) tanto na direção, em Brasília, quanto na Superintendência Regional (SR) do Amazonas. Não houve resposta sobre o motivo do afastamento do delegado Badenes.

A respeito do inquérito, a SR do Amazonas afirmou apenas: “Informamos que o processo do seguinte caso está sob sigilo e que agora está à disposição da justiça e do Ministério Público”.

O advogado defensor de Colômbia, Maurício Neville, disse que seu cliente “não foi citado para ato nenhum” relativo ao inquérito que apura a morte de Maxciel e que, por isso, “não sabe do que se trata e não tenho como me manifestar”.

Em julho do ano passado, quando o Judiciário acolheu a denúncia por suposto crime de mando no caso Bruno e Dom, a defesa de Villar declarou à imprensa que recebeu a notícia “com tranquilidade”, que não havia indícios que ligassem o acusado ao crime e que o “caso será esclarecido durante o processo e o homem deve ser absolvido”.

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