A aprovação do chamado Projeto de Lei da Dosimetria (PL 2.162 de 2023) na calada da madrugada de quarta-feira (10) acendeu um sinal de alerta entre especialistas do Direito Penal. O projeto, para juristas ouvidos pelo Brasil de Fato, foi analisado como uma manobra para reduzir a condenação de réus ligados a crimes contra o Estado de Direito, mas pode ter um efeito massiva, beneficiando outros criminosos, ao acabar com o acúmulo de penas, que garante a soma do tempo de condenação por cada crime.
Eles apontam que ao mexer em normas gerais de aplicação e progressão de pena, o texto criou um efeito colateral inesperado: a possível libertação e o benefício de milhares de condenados por crimes comuns.
O texto do PL propõe uma alteração significativa nos critérios objetivos para a progressão de regime, que é a transição do regime fechado para o semiaberto, ou deste para o aberto.
O ponto central do projeto é permitir que a progressão ocorra após o cumprimento de apenas um sexto (16%) da pena, um percentual que hoje é aplicado estritamente a réus primários condenados por crimes sem violência. Pela lei atual, os requisitos variam, podendo chegar a 70% da pena em casos de reincidência em crime hediondo.
O PL da Dosimetria estende a progressão mais branda (16%) a condenados por crimes que envolvem violência ou grave ameaça, desde que não se enquadrem nas exceções do próprio projeto. No caso de delitos como os crimes contra as instituições democráticas (a exemplo da tentativa de golpe de Estado), os criminosos passam a se beneficiar desse menor tempo de cumprimento.
Exceções e aumento de prazos
Simultaneamente, o projeto estabelece exceções a essa regra principal, aumentando o tempo mínimo de cumprimento para determinados grupos de infrações. Por exemplo, se a condenação for por crimes previstos nos Títulos I (crimes contra a pessoa) e II (crimes contra o patrimônio) do Código Penal, o tempo mínimo de cumprimento de pena para a progressão de regime é fixado em 25%.
O jurista e professor Lenio Streck é categórico ao criticar o texto. Segundo ele, o projeto, se aplicado de forma isonômica, pode gerar o caos. “O projeto bolsonarista criará o caos. Porque — e isso é consenso entre os penalistas importantes, em especial Juarez Tavares — o projeto da Dosimetria acabou com o sistema de acumulação penal, o chamado concurso material,” afirma Streck.
A consequência prática, segundo o especialista, seria massiva. “Aprovado o projeto assim como está e se a aplicação do direito for para valer, metade dos condenados hoje nos presídios serão beneficiados e soltos. Insisto: se for para valer. Por que é assim: a regra tem que ser aplicada analogicamente a todos os delitos. Uma regra de concurso não pode variar ou ficar restrita de acordo com o crime. Se o projeto que mirar no padre, acerta em toda a igreja. A gravidade do crime não tem por base a regra de concurso, e vice-versa, mas sim a relevância do bem jurídico. Os juízes terão de aplicar a regra de forma analógica e isonômica.”
O casuísmo penal e a intenção velada
O advogado criminalista Filipe Knaak Sodré associado ao Instituto de Defesa do Direito de Defesa (IDDD) destaca também a aprovação conjunta do PL Antifacção e do PL da Dosimetria. Para ele, as propostas evidenciam a “total ausência de qualquer projeto real de uniformização e racionalização do sistema penal e processual penal brasileiro.”
Sodré explica que, enquanto o PL Antifacção busca o recrudescimento, o PL da Dosimetria tem a intenção de reduzir a condenação de indivíduos condenados por crimes contra o Estado de Direito. “Como as propostas de anistia acabaram encalhando, a saída foi reestruturar de maneira geral o sistema de progressão de regime para beneficiar esses indivíduos, mesmo que para isso fosse necessário pagar o preço de beneficiar também condenados por outros crimes,” analisa.
Essa distinção no tratamento penal é o ponto central da crítica. O projeto, apesar do apelido, promove mudanças reais na dosimetria para condenações pelos artigos 359-L e 359-M do Código Penal (crimes contra as instituições democráticas).
“Mais uma vez, fica nítida a diferenciação entre o tratamento penal concedido ao ‘criminoso comum’ e àqueles que estão mais próximos às camadas superiores e fogem ao estereótipo da criminalização. Único objetivo é beneficiar diretamente o ex-presidente Bolsonaro e seus apoiadores condenados criminalmente” afirma Sodré. “Basta ver que a pena aplicável, por exemplo, a alguém que com o uso de métodos de violência tentar derrubar o governo e os poderes da República ficará igual ou menor do que a de qualquer ladrão armado.”
Flexibilização da progressão para crimes graves
O PL da Dosimetria também gera grande confusão e preocupação ao alterar os requisitos objetivos para a progressão de regime. O texto propõe aumentar o rol de infrações cuja progressão passa a ser a partir de um sexto do cumprimento da pena.
Sodré esclarece que, embora os requisitos subjetivos (boa conduta) não tenham mudado, o projeto criou uma disposição que sujeita a progressões mais severas apenas crimes previstos nos Títulos I e II do Código Penal, ou os crimes hediondos. “Ora, há vários crimes hoje, graves, que estão fora dessa categoria,” alerta Sodré.
Ele cita como exemplo o crime de exploração sexual praticado com violência (art. 228, § 2º, Código Penal), ou o de coação no curso do processo (art. 344, CP). Tais crimes, que são de natureza grave, terão uma “injustificável redução do período mínimo de progressão,” uma vez que se beneficiarão da regra mais branda de um sexto, originalmente desenhada para acelerar a progressão de crimes políticos.
O PL pode beneficiar também condenados por corrupção, previstos no Título XI do Código Penal e por crimes ambientais. Diante disso, o senador Esperidião Amin (PP-SC), decidiu alterar o texto aprovado pela Câmara após identificar essas brechas.
Percepção de impunidade
Questionado sobre a finalidade preventiva da pena, Sodré reconhece a complexidade. Embora estudos apontem que penas elevadas têm pouca relevância na redução da criminalidade, ele enfatiza que a nova legislação falha em gerar um sistema punitivo não harmônico.
“A percepção de impunidade, neste caso, se dá porque há ausência de um escalonamento sério e harmônico do tratamento penal na lei, gerando na sociedade a [impressão de que] a prisão em geral é só para a classe baixa, negra e periférica, porque para outras sempre há um ‘jeitinho’ previsto para sair da prisão em menos tempo.”
Na quarta-feira, a deputada federal Erika Hilton (PSOL-SP) criticou a aprovação do PL da Dosimetria, afirmando que “a qualquer sinal de que um político do centrão ou da direita será responsabilizado por seus atos, ou sua corrupção, correm para alterar as regras do jogo”.
A movimentação também foi alvo de críticas da deputada federal Natália Bonavides (PT-RN), que usou suas redes sociais para declarar que a Casa “votou escondido para salvar Bolsonaro” enquanto “a maioria esmagadora da classe trabalhadora está dormindo e descansando da exaustiva escala 6×1”.
