O sociólogo brasileiro Oscar D’Alva ganhou o prêmio de melhor tese em língua portuguesa da Association of Internet Researchers, a AoIR, na sigla em inglês, um dos mais prestigiosos do mundo na área de pesquisa de internet. Mas ele nunca subiu ao palco do congresso da associação, que aconteceu em outubro, para recebê-lo.
D’Alva recusou o prêmio ao saber que a conferência tinha patrocínio de uma divisão de pesquisa da Microsoft – justamente uma das empresas sobre a qual sua tese de doutorado se debruçou.
“É uma triste ironia que a mesma associação que concede um prêmio por uma pesquisa crítica sobre as Big Techs, seja financiada por uma destas empresas monopolistas”, critica. “Respeito as decisões da AoIR e de seus associados, mas entendo que esta é uma contradição insustentável”, escreveu D’Alva em uma carta pública durante o evento, que aconteceu no Rio de Janeiro.
Para ele, essa contradição “demonstra, mais uma vez, a força heurística dos achados de minha pesquisa, que destaca ações análogas destas empresas como uma forma direta ou indireta de exercício de influência corporativa e de captura da ciência e de bens públicos por interesses privados”.
Servidor do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística, o IBGE, D’Alva investigou em seu doutorado pela Universidade Federal do Ceará como o campo estatístico está frente a uma transformação profunda ocasionada pelas big techs.
Segundo ele, a introdução de novos métodos e fontes de dados proporcionada por essas empresas sob a alçada do conceito big data está provocando um encontro entre campos que enxergam o dado por perspectivas e lógicas distintas.
“Para um campo, isso é um bem público, para outro é mercadoria”, disse D’Alva em entrevista ao Intercept Brasil. Ao longo de sua pesquisa, o sociólogo e IBGEano identificou ainda como a Organização das Nações Unidas, a ONU, serviu de plataforma para o interesse de corporações privadas que viram ali a oportunidade de criar novos mercados – desde nuvens até soluções de privacidade.
Como em outros campos, a exemplo do ambiental, as empresas de tecnologia do Norte Global tiveram sucesso em impor a ideia de que o campo estatístico demanda inovação – e que inovação passa invariavelmente por trabalhar junto a elas.
Há um risco inerente a essa aproximação, pontua D’Alva. Os pontos de partida, os métodos e os incentivos são praticamente contrários. Ele alerta ainda que o IBGE, que vem atravessando uma grave crise institucional sob a gestão de Márcio Pochmann, também defende soberania no discurso, mas não em suas práticas.
Intercept Brasil – Você recebeu uma importantíssima premiação pela sua tese de doutorado e recusou. Como foi isso?
Oscar D’Alva – Primeiro eu fiquei muito feliz em receber esse prêmio. Eu estou muito feliz, não só por mim, ah, mas por ser uma tese que foi desenvolvida no programa de sociologia da Universidade Federal do Ceará. Esse reconhecimento para a produção acadêmica fora do eixo Sudeste, acho que é importante pela oportunidade de discussão desse tema para o IBGE, para os trabalhadores do IBGE. Então isso também é uma coisa que me deixa feliz.
A tese ganhou menção honrosa na CAPES e depois ganhou esse prêmio da AoIR. E eu realmente não sabia que eles tinham uma ligação histórica com a Microsoft Research porque alguns dos fundadores depois foram trabalhar lá.
Poucos dias antes de vir pro Rio para receber esse prêmio, eu vi na divulgação do evento o logotipo da Microsoft. Foi um susto, porque não tinha menções no site dessa associação, não tinha menções quando eu fiz a inscrição para participar da conferência.
E aí por tudo que eu falei, é evidente que a minha pesquisa que aponta justamente como e as big techs tem se valido dessas dessas estratégias de soft power para influenciar determinados campos, como é que eu poderia receber um prêmio deles, inclusive um prêmio em dinheiro?
A sua tese parte da sua própria experiência como servidor do IBGE. O que te fez querer estudar esse tema na academia?
Eu sou analista do IBGE no Ceará, ingressei em 2010 e comecei a delinear o objeto da investigação em 2018, então já tinha oito anos de prática, de experiência na atividade de produção de estatísticas oficiais.
Eu entrei no IBGE como analista, mas muito mais acompanhando os processos de coleta de dados. Nessa prática eu comecei a observar algumas mudanças que foram ocorrendo nesse período com a disponibilidade de de outras ferramentas, por exemplo, como ferramentas da Google, como Google Maps, e passam a ser utilizadas como instrumentos de trabalho.
Numa atividade que eu coordenei, que foi o Cadastro Nacional de Endereços para fins estatísticos, também comecei a perceber o uso de outras fontes de dados de registros administrativos, dados do concessionário de energia elétrica, dados dos Correios.
‘Há um movimento que tem instrumentalizado a própria ideia de modernização e inovação, compreendida como uma aproximação com corporações privadas’.
Isso foi a primeira motivação para pensar, ‘tem novas fontes de dados que estão surgindo, não é só essas que citei, mas como, por exemplo, dados de telefones celulares, dados de redes sociais. A minha dúvida inicial era até que ponto a incorporação de novas fontes de dados, de novos métodos que estão sendo desenvolvidos fora desse campo estatístico, pode gerar alguma reconfiguração nesse processo de trabalho.
Mas no curso da investigação, outras questões se apresentaram. Como é uma questão muito contemporânea, de certa forma a pesquisa teve a sorte de ter um novo objeto que foi a implantação do projeto ONU Big Data, com a implantação de um hub regional de big data para estatísticas oficiais na Escola Nacional de Ciências Estatísticas, que tinha por objetivo disseminar o uso dessas novas fontes de dados chamadas por esse termo genérico big data para aumentar o seu uso para estatísticas oficiais.
E qual foi a sua hipótese de pesquisa?
De que a introdução dessas novas fontes e métodos na produção de estatísticas oficiais leva a uma intersecção entre dois campos de práticas que têm origens, histórias e lógicas distintas. Eu entendo que essa intersecção entre esses dois campos estaria nos levando a uma transição para um novo regime de quantificação, seria um regime de dataficação.
E aí a minha tese é de que há aí dois obstáculos. Um obstáculo que eu intitulo de obstáculo ontológico, que tem a ver com a própria natureza do dado. Então, para o campo estatístico, cuja origem é vinculada às próprias origens dos estados nacionais, que são as atividades censitárias, são as atividades cartográficas para o próprio reconhecimento do estado enquanto tal. E para esse campo, tradicionalmente, a coleta desses dados e esses próprios dados são compreendidos como bens públicos.
Então, toda a lógica que envolve a coleta e o processamento desses dados entende que a natureza desse dado é um bem público.
Que não é mesma a lógica sob a qual opera a ideia de big data trazida pelas empresas.
Sim. Para esse campo algorítmico que nasce vinculado ao próprio surgimento da internet e depois ao desenvolvimento de corporações de tecnologia, principalmente no Norte global, que passam a extrair e cercar os dados com finalidades mercantis e comerciais, os dados são mercadorias.
Então, há aí uma contradição fundamental, ontológica, da própria realidade desse dado. A intersecção entre esses dois campos vai provocar uma série de tensões que na minha pesquisa, eu entendo que essas tensões se originam desse confronto original. Para um campo, isso é um bem público, para outro é mercadoria.
Sua tese apontou também um outro obstáculo ligado à coleta e aos métodos.
Sim, que eu intitulo de epistemológico, que tem a ver com conhecimento e principalmente dos métodos. Há uma diferença fundamental nos métodos tradicionalmente utilizados pelos Institutos Nacionais de Estatística para produção de informações estatísticas.
A ciência estatística empregada para produção dessas informações é principalmente uma estatística frequentista, ou seja, ela se apoia na observação de frequências de eventos observáveis. Ela também se apoia em informações estruturadas, ou seja, você tem para a produção dessa informação, você tem todo um mapeamento do universo, um conhecimento a que população se referem os dados e as informações que vão ser divulgadas.
E esse dado também busca ter representatividade para poder justamente oferecer uma informação que seja aplicada a uma a uma cidade, a uma unidade da federação, a um bairro, a um país. Ou seja, ela tem uma base representativa.
É um processo que é tradicionalmente dedutivo, ou seja, essas instituições que produzem informações estatísticas são mobilizadas inicialmente por questões-problema. Desemprego é uma questão que surge como um problema social e que depois se procura dar uma resposta.
Que é um incentivo diferente da produção e coleta de dados pelas empresas de tecnologia.
Quando falamos dessas novas fontes de dados, a gente tem uma inversão desse processo em vários sentidos. Primeiro, são fontes de dados que não foram originalmente pensados e estruturados para produção desse tipo de informação pública, desse tipo de informação estatística.
Em geral são subprodutos de transações digitais, seja gerada na interação dos usuários com plataformas, seja a interação desses usuários com dispositivos móveis, como os telefones celulares, sejam dados de sensores, como sensores de tráfego. E segundo que são informações que em geral não são representativas de um grupo populacional, então elas não têm representatividade.
E qual é o efeito dessa tensão?
Se no campo estatístico, depois de séculos, você teve a formação de um tipo profissional, que é o que eu defino como estatístico de estado, um profissional orientado pelos valores do serviço público e pelos valores científicos do cuidado com os métodos, cuidado com a representatividade, com a publicidade desses métodos e sobre métodos transparentes e que possibilitem uma explicação daquele que está sendo informado, por outro lado, você tem nesse outro campo o desenvolvimento de um novo tipo profissional que é do cientista de dados.
É um profissional, uma área híbrida que se origina mais recentemente da ciência da computação com a estatística, mas principalmente com essa estatística da corrente bayesiana e do aprendizado de máquinas. E você tem aí um tipo profissional que está muito mais vinculado a um outro conjunto de valores. Valores que estão mais próximos desse campo algorítmico, estão mais próximos da influência dessas corporações e têm disposições que são diferentes da estatística. São mais orientados ao empreendedorismo.
E esses profissionais têm se aproximado mais do campo estatístico?
O que eu proponho, a partir das evidências empíricas, é que esses dois obstáculos, eles vão conduzindo ao que eu chamo de um duplo movimento. Há um movimento que tem defendido a modernização do campo estatístico e tem instrumentalizado a própria ideia de modernização e inovação, compreendida como uma aproximação com agentes privados, com corporações privadas. Então esse movimento de modernização eu compreendo como um movimento pró-mercado, um movimento de aproximação desse campo tradicionalmente estatal com o mercado.
Esses agentes que adotam esse discurso compreendem que a inovação tem sido gerada no setor privado, principalmente nas corporações privadas, e que é necessário haver a modernização do campo estatístico para que ele não perca a sua pertinência, não fique defasado. Então seria preciso haver essa modernização – e o caminho da modernização seria se abrir para o mercado por meio de parcerias público-privadas.
E onde entra a participação da ONU?
Esse é um discurso que passa a ser desenvolvido fortemente na divisão estatística da ONU e na Comissão Estatística da ONU, principalmente a partir da discussão da Agenda 2030, dos objetivos do desenvolvimento sustentável.
A ONU está passando por um por uma série de crises. Podemos identificar também que muitas dessas crises de origem mais recentes se originam a partir da crise financeira de 2008, quando tivemos uma redução do financiamento dos países-membros e uma maior abertura da ONU ao aos capitais privados.
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Tem a criação da Fundação das Nações Unidas em Nova York, que é fundada pelo Ted Kaner, que é o bilionário fundador da CNN e da Time Warner. E se passa a abrigar ali uma série de corporações que passam a financiar a ONU, mas também exercer atividades de lobby, né, naquelas ações que são do seu interesse. No âmbito da Comissão Estatística da ONU, a gente passa a ter um lobby, um apoio financeiro, mas acompanhado de lobby das big techs, principalmente da Microsoft e da Google.
Então é nesse âmbito da definição da nova agenda de desenvolvimento, a partir de 2014 e 2015, em que surge esse discurso da revolução dos dados para o desenvolvimento sustentável.
O que eu compreendo com minha investigação é que os objetivos de desenvolvimento sustentável passam a ser instrumentalizados por esse discurso. A própria ideia de sustentabilidade e desenvolvimento sustentável passa a ser mobilizada como estratégia discursiva em que no fundo você tem interesses objetivos de corporações de tecnologia para criação de novos mercados de dados no setor público. Principalmente dos países do Sul Global e especificamente no campo das estatísticas oficiais.
O que seriam esses mercados de dados?
Você tem várias possibilidades de criação de mercados. Desde a transferência da estrutura de dados dessas instituições para nuvens das big techs, desde a geração de novos protocolos de nuvens com desenvolvimento de tecnologias de privacidade. Toda a discussão em torno da privacidade dos dados também se torna um negócio. Até operações também de comercialização de dados, de compreensão de que os dados são mercadorias que devem ser comercializados no caso de uso de dados de celulares, redes sociais etc.
Aí você passa a ter um impulso desse movimento para o mercado estimulado pela própria divisão estatística e comissão estatística da ONU com o desenvolvimento do projeto ONU Big Data. Lógico, é um projeto que tem grupos de trabalho que passam a pesquisar a pertinência dessas novas fontes. Tudo isso é muito pertinente, mas há no fundo, um discurso e uma penetração de interesses privados nesses grupos de trabalho e em todas essas discussões.
Como esse projeto chega ao Brasil?
A partir daí surge um projeto que é a plataforma global da ONU, que é a ideia de construção de uma plataforma muito orientada pelo próprio modelo das plataformas comerciais das big techs, em que se visa ali operacionalizar uma infraestrutura tecnológica e política que colocaria agentes do estado dos países do Sul Global em colaboração direta com agentes de empresas privadas estadunidenses e também com agentes de institutos nacionais de estatística do Norte Global para o desenvolvimento de novos procedimento e processos para produção de estatísticas oficiais.
Aí eu compreendo que é um risco. Um risco porque essa plataforma passa a ser gerenciada por uma organização não-governamental que é a Parceria Global de dados, a GPSD (na sigla em inglês), sediada na Fundação das Nações Unidas em Nova York e com o financiamento da Google e da Microsoft.
‘Há um discurso de soberania, mas esse discurso não é acompanhado por práticas de soberania.’
Além disso, a plataforma passa a contar com créditos de nuvem, não só da Google e Microsoft, mas também da Amazon Web Services, e a gente passa a ter participação de pesquisadores da Microsoft dentro do grupo de trabalho de ampliação de privacidade.
Aparentemente, há um interesse da Microsoft em desenvolver novos produtos para o compartilhamento de dados para produção de informações estatísticas, a criação de hubs informacionais em que se poderia ter protocolos de comunicação para geração de informações a partir de algoritmos. Uma série de iniciativas que estão em desenvolvimento ainda. É importante também destacar que a tese pega um momento muito inicial dessas articulações e a tentativa das corporações em gerar novos mercados, novos negócios, a partir de um processo que é de médio e longo prazo.
O projeto gerou quatro hubs regionais, um no Brasil para a América Latina, um Ruanda para a África, um nos Emirados Árabes Unidos para o Oriente Médio e um na Indonésia para a Ásia, além de um hub setorial na China. Esses hubs passam a promover atividades de formação que passam a contar com a participação de empresas junto com institutos nacionais de estatística. E o IBGE passa a ser um promotor.
A Escola Nacional de Ciências Estatísticas do IBGE passa a ser um promotor do projeto durante o governo Bolsonaro. Eu acompanhei isso de 2021 a 2023.
A gente lembra bem o que ocorreu com o IBGE nos anos Bolsonaro, mas como isso ficou com a troca de governo? Por que a gente tem visto que, de maneira ampla, o Executivo fala em soberania tecnológica, mas tem aberto cada vez mais espaço para as empresas de tecnologia estrangeiras.
A gente tem a entrada de um novo presidente [no IBGE] Márcio Pochmann que abre o seu discurso de entrada na instituição com um discurso de soberania.
Para ser bem direto, a gente tá vivendo uma profunda crise institucional no IBGE, na gestão Pochmann, infelizmente. Agora já não é mais o sociólogo que tá falando, é o IBGEano, né? Estamos há mais de um ano numa sucessão de crises. Mas respondendo bem diretamente à tua questão, o que eu percebo e o que nós percebemos é que há um discurso de soberania, mas esse discurso não é acompanhado por práticas de soberania.
O que ainda não é possível diagnosticar é se a debilidade dessas práticas e dessas ações, isso é por um mau diagnóstico ou por um diagnóstico superficial ou por um desconhecimento técnico e político ou se ele é projeto.
Mas que há um descolamento entre discurso e prática, isso aí, sem dúvida. E isso é muito preocupante. Então, a gente tá num momento de crises e embates que têm muito a ver com todo esse processo e essas discussões de dataficação, digitalização, big techs e o papel do IBGE nesse novo cenário.
