Maria Irene de Carvalho, 64 anos, lecionou na rede estadual de ensino em São Paulo por mais de 40 anos. Neste ano, não aguentou mais. “Eu pedi para sair da escola para continuar vivendo”, ela me disse. “As condições de trabalho estavam afetando a minha saúde. Passei a ter problemas emocionais e cardíacos”, conta a professora de sociologia na Escola Estadual Professora Odila Bento Mirarchi, em Mauá, na Grande São Paulo.
O governador Tarcísio de Freitas, do Republicanos, implementou em 2024 um sistema de metas agressivas baseado no desempenho dos estudantes, com a imposição do uso de plataformas online de ensino.
Idealizado pelo secretário de Educação Renato Feder, o sistema, na teoria, visa implantar uma lógica agressiva de resultados e mercado para aumentar a eficiência e os resultados da educação pública. Na prática, está provocando uma onda de adoecimentos sem precedentes entre diretores, professores e alunos.
No ano passado, 42 mil professores foram afastados por causa de transtornos mentais e comportamentais, segundo o Sindicato dos Professores do Ensino Oficial de São Paulo, conhecido como Apeoesp. O sindicato utiliza dados do Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos, o Dieese, que assessora o movimento sindical.
Professores, alunos, supervisores e diretores disseram ao Intercept Brasil estar sob constantes ameaças de demissão e afastamento. Eles são cobrados pelo desempenho dos alunos em provas de avaliação. Quando a escola apresenta baixos índices, diretores e professores são removidos.
Elísio Fagundes Santos era professor de Filosofia na mesma escola onde Irene lecionava. Morreu vítima de infarto em outubro. “Vão dizer que ele não morreu por isso. Mas o Elísio estava muito pressionado”, me disse a professora. “Passamos a trabalhar o dobro, com uma cobrança de metas absurda. Isso está abalando emocionalmente os professores. Eu resolvi sair, fui embora. E com ele aconteceu essa fatalidade”, lamenta.
‘Eles humilham as pessoas. Estão enlouquecendo a gente. Trouxeram agora um modelo de fábrica para as escolas.’
O Intercept apurou que ao menos outros dois educadores morreram após passar por pressões semelhantes. Uma professora da Escola Estadual Maria Carolina, de Diadema, no ABC, morreu também de infarto no dia 17 de março, enquanto trabalhava. Segundo o professor Wagner, seu colega, a professora tinha outras doenças e estava “alterada, muito machucada e insatisfeita com o trabalho”.
O professor ainda denunciou o caso de um outro colega, diretor da Escola Pedro Madoglio, também de Diadema, que faleceu no dia 19 de abril, após abandonar um tratamento contra a leucemia.
“Na escola dele, nenhum diretor parava lá. Ele vinha sendo cobrado de forma muito dura pelos dirigentes de ensino de Diadema. São ameaças fortes mesmo, do tipo perder a função e, consequentemente, o salário”, diz Wagner . “Eles humilham as pessoas. Estão enlouquecendo a gente. Trouxeram agora um modelo de fábrica para as escolas, com muita pressão”.
A Secretaria de Educação disse, em nota, acompanhar a situação de saúde dos educadores, mas contesta o número apresentado pela Apeoesp. E afirma que seu serviço de teleatendimento psicológico e psiquiátrico “está à disposição de todos os servidores, com mais de 650 mil atendimentos realizados até 31 de outubro”.
As pressões também começam a afetar os alunos, denunciam os educadores. Em Ribeirão Preto, uma estudante de 14 anos do 9ª ano de uma escola estadual tentou o suicídio duas vezes, em outubro e no final de novembro. O motivo, segundo relatou ao Intercept o professor João, da rede estadual na cidade, seriam as cobranças de um colega dele para a aluna conseguir melhores resultados em avaliações.
O Intercept apurou que a família confirmou que o professor “pegava no pé” da estudante, e a “diretora falava que tinha metas”.
A Secretaria de Educação disse que não havia recebido “denúncias sobre as irregularidades mencionadas” até o momento na escola estadual em que a menina estuda.
‘Todos agora são inimigos. O diretor é inimigo do professor, e o professor inimigo do aluno’
Por ocuparem o topo na escala hierárquica de cada escola, os diretores são os primeiros a serem pressionados por resultados pela Secretaria de Educação de São Paulo.
“A gente mudou a lei aqui em São Paulo. Se o diretor não entrega resultado, ele perde o cargo”, disse o secretário de Educação, Renato Feder, ao podcast Market Makers em agosto. “Eles têm meta mínima. Tem de subir 0,2 a cada ano. Se não subir, tchau!”.
Entre janeiro e novembro de 2025, 294 diretores da rede estadual foram afastados pela gestão de Tarcísio de Freitas por terem sido apontados como responsáveis pelo mau desempenho de suas escolas em avaliações, segundo Chico Poli, presidente do Sindicato dos Especialistas de Educação, a Udemo. O órgão coletou as informações por meio de dados no Diário Oficial do Estado.
“A lógica agora é a de uma empresa: se ela vai mal, muda o gerente. As questões que levam a esse quadro na educação não são consideradas. O secretário de Educação age como se a escola fosse um supermercado. É só mudar o gerente. Se a escola não funciona do jeito que ele quer, ele manda embora”, afirma Poli.
No modelo atual de ensino na rede estadual, a maioria das aulas é assistida por um coordenador da área lecionada ou um coordenador pedagógico, ou ainda pelo diretor e vice-diretor.
“Criou-se uma situação de animosidade. Todos agora são inimigos. O diretor é inimigo do professor, e o professor inimigo do aluno. É uma situação de total pressão, constrangimento e coerção”, avalia Chico Poli.
Os docentes consideram a situação insustentável. “Os professores estão ficando malucos, sem saber o que fazer para os alunos atingirem o resultado. A gestão cobra, porque é a cabeça da gestão que está na linha de tiro. A coordenação cobra, porque também está na mesma linha. E nós, professores, acabamos cobrando os alunos. Isso gera um adoecimento geral, de professores e alunos. Aqueles que não conseguem atingir um resultado, ficam ansiosos e mal em todos os sentidos”, avalia o professor Walter, da rede estadual na cidade de Salto, no interior paulista.
Professor diz já ter presenciado alunos serem retirados de suas casas para avaliações.
Em um manifesto, estudantes do ensino médio da rede pública no dia 11 de novembro, revelaram que algumas escolas teriam facilitado a ocorrência de fraudes e colas durante a Prova Paulista com o objetivo de elevar seus índices de desempenho, beneficiando tanto a escola quanto as diretorias de ensino.
O Intercept também teve acesso a mensagens e depoimentos que mostram que, diante da pressão, escolas têm adotado diferentes estratégias para cumprir as metas – elas vão de exposição vexatória de quem foi mal a driblar o sistema de faltas para não contar os alunos com desempenho ruim.
Em Ribeirão Preto, um professor da rede estadual, João Carlos, afirmou ao Intercept que, na mesma escola em que a aluna de 14 anos tentou o suicídio, outra solução estaria sendo adotada. “Tem alunos que frequentam as aulas, mas recebem faltas para que, assim, saíam de uma vez da escola e não piorem os índices”, revelou o professor.
O Intercept teve acesso a mensagens da direção da escola determinando a professores que alunos presentes à sala de aula fossem registrados como ausentes.
O professor diz também já ter presenciado alunos serem retirados de suas casas, “à força”, segundo ele, para avaliações, como a chamada “prova paulista”, “que é de sumo interesse, tanto para a diretora quanto para o governador do estado”.
O professor conta que dirigentes da escola costumam colocar nas paredes dos corredores os resultados de avaliações de alunos que tiveram resultados pífios. Para ele, essa atitude expõe os alunos a situações vexatórias e geram problemas emocionais.
Educação como mercadoria: a estratégia de Feder
O modelo empresarial de gestão nas escolas implantado por Tarcísio de Freitas foi importado do Paraná, onde o empresário Renato Feder foi secretário de Educação na gestão de Ratinho Júnior, do PSD, entre 2019 a 2022.
Embora professor de formação, Feder é empresário, com longa carreira no setor privado, principalmente como CEO da Multilaser, empresa de tecnologia, entre 2003 e 2018.
No Paraná, sua gestão marcada pela implementação das escolas cívico-militares e pela privatização encantou Tarcísio de Freitas, que o chamou para a secretaria estadual paulista – ao mesmo tempo em que fazia negócios milionários com a Multilaser.
Ao assumir o cargo em São Paulo em janeiro de 2023, Renato Feder afirmou que pretendia transformar São Paulo em uma “potência educacional”.
Em 2024, o novo secretário decidiu avaliar os alunos da rede escolar a partir da frequência nas aulas e de resultados em provas bimestrais e desempenhos como a do Saresp e do Sistema de Avaliação da Educação Básica, o Saeb.
O Saresp avalia o desempenho da escolaridade básica no estado; e o Saeb, por meio de testes e questionários a estudantes, professores e gestores escolares, é utilizado para o cálculo do Índice de Desenvolvimento de Educação Básica, o Ideb.
A Secretaria de Educação nega que haja afastamento automático de professores e diretores e diz que “nenhum diretor ou professor é afastado exclusivamente por resultados de avaliações externas”.
Segundo o governo, a avaliação considera múltiplos critérios, como frequência, participação em formações, acompanhamento pedagógico”, além das provas do Sistema de Avaliação de Rendimento Escolar do Estado de São Paulo, o Saresp, e indicadores de desigualdade.
Plataformas digitais não melhoraram resultados escolares
Além das metas agressivas, outra aposta de Tarcísio e Feder para turbinar os índices de qualidade do ensino na rede estadual de São Paulo foi a adoção massiva de plataformas digitais de ensino na rede pública.
O uso desses sistemas começou na gestão do governador João Doria, ex-PSDB, entre 2019 e 2022, e foi intensificado – e se tornou um dos pontos de maior tensão entre os educadores e o governo.
O sistema utilizado, chamado Bussiness Intelligence, ou BI, serve para monitorar as atividades em várias plataformas educacionais, entre elas a Leia SP (para incentivar a leitura), Speak (idiomas) e Alura (tecnologia). Diversas empresas desenvolvem essas ferramentas e plataformas de BI, que é um conjunto de processos e tecnologias
O governo Tarcísio gastou R$ 471 milhões somente em 2024 nessas plataformas – e a iniciativa não melhorou o desempenho das escolas estaduais no sistema de avaliação de rendimento, o Saresp, segundo um estudo da Rede Escola Pública e Universidade, que reúne pesquisadores de universidades paulistas.
‘Vive-se num clima de terrorismo. O terror impera. Houve uma mudança radical no sistema educacional para impor o uso dessas plataformas.’
Mesmo as escolas que atingiram as metas de uso das plataformas definidas pelo governo não registraram melhora de fato, de acordo com o estudo. Para chegar a essa conclusão, os pesquisadores analisaram os dados da própria Secretaria de Educação.
O governo de São Paulo, porém, ao divulgar os resultados do Saresp de 2024, em fevereiro, anunciou que houve uma melhora no desempenho dos alunos da rede estadual, principalmente em Português e Matemática. Os educadores contestaram.
“Não melhorou o ensino. A Secretaria de Educação alterou a métrica utilizada para avaliar o ensino de Português e Matemática. Antes, era um total de pontos acumulados. Agora, mudou para notas. Disseram que melhorou, mas apenas falsearam os dados”, critica Chico Poli.
Além de questões educacionais, a plataformização do ensino levanta questões de privacidade e de segurança. Em julho, a Folha de S.Paulo denunciou que alunos das escolas estaduais hackearam as plataformas para realizar as tarefas em segundos. Alguns deles cobravam entre R$ 2,50 e R$ 10 para realizarem as tarefas de colegas. No Discord, em um grupo com mais de 200 mil usuários, eram compartilhados os métodos para burlar as plataformas.
No início de outubro, o Ministério Público de São Paulo após um pedido do deputado estadual Carlos Giannazi, do Psol, recomendou que a gestão de Tarcísio deixe de obrigar o uso de plataformas nas escolas, e deu um prazo de 30 dias. Se o governo não acatar o pedido, o MP prometeu adotar “as medidas cabíveis”. A Secretaria diz que “analisa” a recomendação.
Giannazi pediu ao MP e ao Tribunal de Contas do Estado de São Paulo para que sejam apurados os valores gastos com as plataformas digitais nas escolas e os contratos firmados com esse objetivo com a Secretaria de Educação.
Para diretores e professores da rede estadual de ensino, as plataformas estão muito distantes das necessidades para a aprendizagem dos alunos.
“O projeto de educação é baseado num sistema absurdo de plataformização, que afronta inclusive a liberdade de cátedra dos professores”, critica Fábio de Moraes, primeiro-presidente do Sindicato dos Professores do Ensino Oficial do Estado de São Paulo, a Apeoesp. “O professor é obrigado a seguir as plataformas. Não somos contra a implementação de tecnologia, mas o protagonista não é o professor”.
“Agora, vive-se num clima de terrorismo. O terror impera. Houve uma mudança radical no sistema educacional para impor o uso dessas plataformas”, diz Moraes. “Isso foi feito por meio de contratos milionários, para as empresas que geram essas plataformas. Toda a rede de ensino está linkada nela. Somos 645 municípios com características totalmente diferentes, e há uma padronização nas plataformas, o que é errado. As próprias avaliações do governo já deixaram claro que não tem dado resultado, mas o governo continua insistindo”, protesta Moraes.
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“Já está provado que esse tipo de material não funciona. A tecnologia é importante, mas para outra finalidade”, corrobora o diretor Chico Poli, da Udemo. “É um material de segunda categoria. Tem vários erros e virou motivo de piada. Como apareceu em uma das plataformas que quem libertou os escravos no Brasil foi dom Pedro 1º, e não a Princesa Isabel. E mais recentemente, outro erro grave: foi dito que Segunda Guerra Mundial ocorreu nos anos 1950 e 1960, quando foi entre 1939 e 1945”, lembra.
O governo do estado, ainda assim, defende o uso das plataformas e contesta as críticas. Segundo a Secretaria da Educação, “análises preliminares indicam que as unidades escolares que integram os recursos digitais à rotina pedagógica tendem a apresentar melhores níveis de engajamento e avanços no processo de ensino-aprendizagem ao longo do tempo”.
A Secretaria afirma que elas não substituem o professor e nem impõem metodologias “e são ferramentas complementares de apoio, diagnóstico e organização de dados”.
Enquanto isso, alunos da rede pública têm que lidar com um problema muito mais rudimentar: eles não têm computador para usar as plataformas. “Há um para cada três alunos e a Secretaria reconhece isso. Isso faz com que os estudantes não consigam dar conta dos exercícios e questionários propostos em salas de aula”, diz Poli. “Eles também não têm computador em casa. Para que consigam cumprir o que é solicitado, os professores precisam ajudá-los a concluir as tarefas em salas de aula”.
“Não há equipamento tecnológico para todos os alunos usarem ao mesmo tempo. Não há como concluir tudo”, confirma o professor Walter, da cidade de Salto.
