De acordo com o Anuário e análises de violência letal, o Maranhão aparece entre os piores desempenhos do país no enfrentamento às mortes violentas, sendo um dos poucos que, em 2024, registraram aumento da taxa de mortes violentas intencionais, na contramão da tendência nacional.
Entre janeiro e outubro de 2025, 113 pessoas foram mortas em decorrência de intervenção policial no Maranhão, contra 79 no mesmo período de 2022 – um aumento de 43,04%. A sequência dos dados do SINESP-MJSP para o estado (79 mortes em 2022, 47 em 2023, 66 em 2024 e 113 em 2025, sempre considerando janeiro a outubro) revela um desenho inquietante: após uma queda em 2023, a letalidade volta a subir em 2024 e explode em 2025. Enquanto o governo estadual divulga sucessivas reduções em crimes violentos letais intencionais e latrocínios, celebrando quedas de homicídios e de delitos patrimoniais em 2024 e 2025, a curva das mortes causadas por agentes públicos cresce em sentido inverso.
Essa contradição não é apenas local. Em 2024, o Brasil registrou redução de cerca de 4% a 6% nas mortes violentas intencionais em relação a 2023, atingindo a menor taxa da década, segundo o Anuário Brasileiro de Segurança Pública e balanços nacionais do Ministério da Justiça. Ao mesmo tempo, a letalidade policial passou a representar 14,1% de todas as mortes violentas do país em 2024, o maior percentual da série recente, com forte seletividade racial: mais de 80% das vítimas são pessoas negras e quase a totalidade homens jovens. Ou seja, o país consegue reduzir homicídios, mas não rompe com a lógica de um policiamento que ainda produz mortes em volume elevado e concentradas em corpos específicos. O Maranhão se insere nesse cenário como um caso particular: de acordo com o Anuário e análises de violência letal, o estado aparece entre os piores desempenhos do país no enfrentamento às mortes violentas, sendo um dos poucos que, em 2024, registraram aumento da taxa de mortes violentas intencionais, na contramão da tendência nacional.
Quando olhamos para as fontes alternativas de dados – como o boletim Pele Alvo, da Rede de Observatórios da Segurança –, aparece a mesma linha geral: entre 2022 e 2023, o Maranhão teria reduzido em cerca de 32,6% as mortes decorrentes de ação policial (de 92 para 62 vítimas no ano cheio), com uma vítima a cada seis dias e predominância de jovens entre 12 e 29 anos. Independentemente das diferenças metodológicas entre bases (ano-calendário versus janeiro–outubro, categorias jurídicas e formas de notificação), o padrão é estável: queda em 2023, seguida de recrudescimento. O ponto de inflexão em 2025 – com 113 mortes em apenas dez meses – indica que o problema não está apenas em “oscilações naturais” da violência, mas na forma como o estado organiza, incentiva e controla a ação das suas forças de segurança.
As causas estruturais dessa escalada são múltiplas e se alimentam mutuamente. Em primeiro plano, há o modelo histórico de segurança pública no Brasil, fortemente marcado pela militarização do policiamento, pela doutrina da “guerra às drogas” e por uma cultura institucional que identifica determinados territórios – periferias urbanas, áreas de expansão de facções, cidades do interior em disputa pelo varejo de drogas – como espaços onde a exceção é tolerada e a morte é naturalizada como técnica de governo. Estudos recentes sobre o Nordeste e o Atlas da Violência 2025 mostram a interiorização da violência letal e a expansão de facções para cidades médias e pequenas, com o aumento de disputas pelo controle de mercados ilícitos e de rotas logísticas. No Maranhão, isso se traduz em operações de alto risco, incursões em áreas periféricas e confrontos em que o custo humano recai sobre jovens negros e pobres, convertidos em inimigos internos.
O segundo elemento estrutural está na combinação de desigualdade social crônica com políticas de segurança desenhadas quase exclusivamente a partir da lógica repressiva. Quando o Estado investe pouco em políticas de juventude, educação, trabalho e urbanização, mas expande prisões e armas, ele redefine prioridades: em vez de garantir condições mínimas de vida, prioriza o controle armado das consequências da própria exclusão. Relatórios de entidades de direitos humanos no Maranhão apontam, há anos, a sobreposição entre encarceramento em massa, ausência de dados transparentes e letalidade policial, destacando a dificuldade de acesso a informações consistentes sobre mortes violentas e sobre o sistema prisional – uma forma de silenciamento institucional que dificulta o controle social sobre a força.
Um terceiro nível diz respeito à gestão concreta da polícia. Em muitos estados, e o Maranhão não é exceção, a produtividade policial ainda é medida de forma implícita por apreensões, prisões e “resultados” em operações, não por redução de letalidade ou fortalecimento de vínculos com a comunidade. A cultura do “confronto” permanece no centro da identidade profissional, alimentada por discursos politicamente rentáveis de “tolerância zero”, “bandido bom é bandido morto” e “retomada de territórios”, que encontram eco em segmentos do próprio governo e em parte da opinião pública. Na prática, isso significa autorizar – simbólica e, às vezes, materialmente – o uso ampliado da força letal, sobretudo em contextos marcados pela atuação de facções, como a própria literatura recente sobre crime organizado no Norte e Nordeste vem sublinhando.
Quando se observa o comportamento do governo do Maranhão nesse campo, algumas falhas se tornam visíveis. A primeira é a insistência em um discurso autocelebratório, que enfatiza quedas percentuais em homicídios e latrocínios, mas não enfrenta de forma frontal a combinação explosiva entre aumento da letalidade policial e crescimento das mortes violentas em 2024, apontada por estudos nacionais. Ao concentrar a comunicação oficial em “recordes de redução” e “operações exitosas”, o governo minimiza as mortes produzidas pelo próprio aparato estatal, transformando-as em dano colateral aceitável. Isso tem efeitos simbólicos importantes: sinaliza para as corporações que o recado principal é “continuem agindo”, não “reduzam a letalidade”.
A segunda falha é a fragilidade da transparência. O boletim Pele Alvo mostra que, mesmo após avanços pontuais, 67,7% dos registros de mortes por intervenção do Estado no Maranhão, em 2023, não tinham informação sobre raça ou cor, e que a maior parte das vítimas era jovem. Se o próprio governo não coleta, sistematiza e divulga, de modo acessível, dados desagregados por raça, idade, território, tipo de ocorrência e unidade envolvida, fica praticamente impossível desenhar políticas específicas de prevenção à letalidade, monitorar unidades mais críticas ou construir metas realistas de redução. A opacidade também dificulta o trabalho de controle externo da atividade policial por parte do Ministério Público, da Defensoria, da sociedade civil e dos órgãos de ouvidoria.
Uma terceira dimensão problemática é a ausência de uma estratégia explícita de redução da letalidade policial como prioridade de governo. Em estados que conseguiram combinar queda de homicídios com diminuição de mortes causadas por policiais, há alguns elementos recorrentes: protocolos claros e públicos de uso progressivo da força; metas de redução de letalidade incorporadas aos indicadores de desempenho; fortalecimento de corregedorias e ouvidorias externas; utilização de câmeras corporais em patrulhas e operações; investimento continuado em formação de policiais voltada a de-escalonamento de conflitos, policiamento de proximidade e respeito a direitos humanos. Em vez de caminhar nessa direção de modo sistemático, o Maranhão segue apoiado em ciclos de operações reativas, ações pontuais de “visibilidade” e um discurso que descola o enfrentamento às facções da necessidade de preservar vidas.
Se o governo do Maranhão quiser, de fato, virar essa chave, precisa antes de tudo admitir que a violência produzida pelo próprio Estado não é detalhe técnico nem “efeito colateral” da eficiência repressiva, mas um problema político central. A partir desse reconhecimento, a redução da letalidade policial deixa de ser um tema lateral e passa a ocupar o mesmo patamar de importância que a queda dos homicídios em geral. Isso supõe assumir, diante da sociedade, metas claras de diminuição das mortes provocadas por agentes públicos, torná-las públicas, acompanhá-las periodicamente e vincular o cumprimento (ou descumprimento) desses objetivos à avaliação de quem comanda as corporações. Ao mesmo tempo, os mecanismos de controle precisam deixar de funcionar como carimbo burocrático. Corregedorias eficazes exigem estrutura, independência e proteção para investigar; ouvidorias com participação social têm de ser porta aberta para denúncias e não apenas formalidade em organograma; e cada morte provocada por policial deve acionar imediatamente um roteiro conhecido por todos: comunicação ao Ministério Público, instauração célere de investigação e realização de perícias por equipes técnicas capazes de trabalhar com autonomia, sem captura corporativa. Só assim o sistema começa a sinalizar que vidas importam também quando o disparo parte da mão do Estado.
Do ponto de vista operacional, experiências nacionais e internacionais sugerem um conjunto de medidas concretas: adoção ampla e transparente de câmeras corporais em unidades operacionais, com regras claras de acionamento e proteção de dados; revisão dos protocolos de abordagem, priorizando inteligência, planejamento prévio e técnicas de negociação em lugar de operações baseadas em constante enfrentamento e fogo intenso; investimento em formação continuada que trabalhe não apenas técnicas de tiro, mas sobretudo mediação de conflitos, comunicação em crise e mecanismos de redução de risco para policiais e civis. Essas medidas não retiram das polícias a capacidade de combater facções armadas, mas deslocam o eixo da ação para o controle proporcional do uso da força.
Nada disso, porém, terá efeitos duradouros se não houver uma inflexão na política criminal mais ampla. A “guerra às drogas” – que organiza boa parte das incursões violentas, prisões em flagrante e confrontos – tem se mostrado, há décadas, menos uma estratégia de redução de danos do que um dispositivo de gestão de populações indesejáveis. Enquanto a resposta do estado se limitar a intensificar a repressão em territórios pobres, sem enfrentar o mercado financeiro que lava recursos ilícitos, a circulação de armas e a corrupção que alimenta o crime organizado, a pressão sobre a ponta policial continuará alta e a letalidade permanecerá como válvula de escape. Repensar prioridades – com maior foco em inteligência financeira, em cooperação interestadual e em políticas urbanas e sociais para as periferias – é condição para que a polícia deixe de ser a única face visível da ação estatal nesses espaços.
O aumento de 43,04% nas mortes por intervenção policial entre 2022 e 2025, no Maranhão, não é um “desvio estatístico” nem um efeito colateral inevitável da “eficiência” no combate ao crime. Ele é um indicador de que o estado tem falhado em controlar a força que ele próprio autoriza, aceitando que a proteção da sociedade se faça, em parte, por meio da produção de mortes evitáveis. Ao insistir em celebrar quedas gerais de criminalidade sem enfrentar a letalidade policial, o governo empurra para debaixo do tapete um dos custos mais brutais da sua política de segurança. Reconhecer o problema, abrir os dados, estabelecer metas claras de redução e reorganizar o modo de agir das polícias são passos indispensáveis para que a segurança pública no Maranhão deixe de ser medida pelo número de corpos e passe a ser avaliada pela capacidade de preservar vidas – inclusive nas situações de maior conflito.
Paulo Henrique Matos de Jesus; Doutor em História; pesquisador em História Social do Crime, Aparatos de Policiamento e Segurança Pública; Analista Técnico do Observatório da Criminalidade da Associação dos Delegados do Estado do Maranhão (ADEPOL-MA)
